Política

Braskem patrocina plano de inventário sem apoio do Iphan

Apresentado pelo MPF como “projeto símbolo de valorização cultural”, plano é visto com desconfiança

Por Ricardo Rodrigues - colaborador / Tribuna Independente 06/08/2024 11h44 - Atualizado em 06/08/2024 18h49
Braskem patrocina plano de inventário sem apoio do Iphan
Casarão onde morou a médica alagoana Nise da Silveira fica em Bebedouro, um dos bairros afetados - Foto: Sandro Lima

Apresentado na semana passada, pelo Ministério Público Federal (MPF), como “um projeto símbolo de resistência e valorização cultural”, o plano de inventário do patrimônio histórico, arquitetônico, cultural e imaterial dos bairros que afundam, patrocinado pela Braskem, não conta com o apoio do Iphan e é criticado por especialistas no assunto.

Para a bióloga Neirevane Nunes, que milita no movimento contra a mineração predatória, o plano é um fiasco e não atende aos anseios da população afetada, nem resgata o que há de mais importante na vida das pessoas que perderam tudo, com o afundamento do solo causado pela Braskem, em Maceió.

Ainda assim, o plano bancado pela mineradora foi divulgado nas redes sociais do MPF de Alagoas como um avanço, por seu caráter “participativo”, na formatação de um levantamento completo e minucioso do patrimônio cultural imaterial dos cinco bairros destruídos diretamente pela mineração predatória da Braskem.

“Isso é revoltante para nós, que fazemos parte das famílias atingidas pelo crime da Braskem, ler uma notícia como essa divulgada pelo MPF de Alagoas. Como dizer que esse projeto é símbolo de resistência se o mesmo serve à Braskem?”, questionou Neirevane, lembrando que escreveu um artigo, exatamente sobre esse projeto, expressando essa revolta.

O artigo da bióloga, publicado em maio deste ano em um site local, tinha como título: “Inventário do Patrimônio Cultural Imaterial de Maceió é mais uma ‘maquiagem’ da Braskem”. No artigo, Neirevane destaca que “Inventário Cultural se faz para o que existe ou, pelo menos, o que se pretende manter existindo. Não para bairros já demolidos”.

SEIS ANOS DA TRAGÉDIA

“Em tempos de mudanças rápidas e urbanização acelerada, preservar o patrimônio cultural imaterial é essencial para manter viva a identidade e a memória de um povo. Nos bairros atingidos pelo afundamento do solo, essa necessidade se torna ainda mais urgente”, afirmou o MPF na apresentação do plano.

Detalhe: a tragédia eclodiu em março de 2018, portanto completou seis anos e só agora um projeto de resgate cultural do que restou é a apresentado.

“Foi pensando nessa urgência e na necessidade de manter viva a herança cultural que define a identidade, história e valores daquelas comunidades que precisaram se deslocar, e também do próprio território, que o Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público do Estado de Alagoas (MP/AL) atuam pela realização de um inventário participativo do patrimônio cultural imaterial dos bairros de Bebedouro, Bom Parto, Mutange, Pinheiro e Farol”, justificou o órgão ministerial.

Para tratar do assunto, uma reunião foi realizada na última terça-feira (30/7), na sede do MPF, onde os pesquisadores, coordenadores do Projeto Inventário Participativo do Patrimônio Cultural Imaterial (IPCI), apresentaram os trabalhos desenvolvidos até o momento. Na ocasião, o MPF destacou “o engajamento e compromisso dos agentes de pesquisa, especialmente selecionados para execução do plano e para fomentar a participação social”. Na reunião, apesar do caráter “participativo” do plano, não havia representantes das vítimas da mineração.

“É importante destacar que esta iniciativa está sendo realizada por professoras da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e consultores escolhidos por essas professoras, o que garante a eficiência do método adotado e a confiança nos resultados que serão alcançados”, afirmou o MPF. “Os recursos financeiros para realização das atividades estão previstos no Plano de Ações Sociourbanísticas (PAS), garantidos através da ação civil pública que busca a reparação socioambiental pelos danos causados pela Braskem, com base no princípio do poluidor-pagador”.

“Considerando as regras de direito ambiental, é inaceitável que o poder público custeie com dinheiro público ações que visem reparar danos surgidos após uma tragédia causada por uma empresa multibilionária. Esta responsabilidade recai sobre a Braskem, que deve assegurar os recursos financeiros necessários para a preservação, também, do patrimônio cultural afetado. É nesse sentido que MPF e MP/AL vêm atuando”, acrescentou.

Os MPs reconhecem que os bairros atingidos pela mineração têm uma história vibrante e uma riqueza cultural inestimável, em risco devido ao deslocamento forçado de suas populações. Por isso, destacaram que “o projeto IPCI Maceió pretende mapear e documentar essa herança cultural, preservando a memória cultural e garantindo que as futuras gerações possam conhecer e celebrar suas raízes”.

Para os Ministérios Públicos, “a realização desse levantamento é fundamental para assegurar que, mesmo diante da tragédia, das mudanças e dos reveses provocados pela empresa, a cultura e as tradições locais não sejam perdidas”.

Iphan não participa do plano, afirmam técnicos

A reportagem da Tribuna Independente foi ouvir os técnicos do Iphan, para que eles avaliassem o plano apresentado essa semana pelo MPF. Não foi uma tarefa fácil, por se tratar de um órgão público, os técnicos nem sempre estão autorizados a emitir opiniões e quando o fazem, se não estão de acordo com a chefia, pode sofrer represália.

Por isso, a maioria das conversas foi em off, ou seja, sem que a fonte pudesse ter o seu nome citado. No entanto, uma informação foi confirmada por todos eles: o Iphan em Alagoas não participou do plano apresentado pelos MPs de Alagoas, para resgatar o que restou do patrimônio histórico, arquitetônico, cultural e imaterial dos bairros afetados pelo afundamento do solo em Maceió.

Para o Iphan em Alagoas, o inventário seria importante pelo menos há 4 anos atrás, pois tem o objetivo de dar continuidade as práticas culturais. Neste caso, quando não há mais ninguém, será apenas o registro do que se tinha.

“O propósito de um inventário participativo não é registrar em foto e guardar, e sim salvaguardar a cultura para que ela continue. Até onde sei, esse não é o propósito da pesquisa em andamento”, explicou uma técnica do Iphan, pedindo para que seu nome não fosse citado na reportagem.

“Melhor dizendo, o trabalho é só uma proforma. Não acrescentará nada à população atingida e nem a seus detentores de cultura. Pois não possibilita sua continuidade”, acrescentou, dizendo que sempre foi a favor do inventário, “desde 2021, quando o trabalho fazia sentido”.

Segundo essa funcionária, o Iphan em Alagoas não está participando disso e não concorda com o que está sendo feito. No entanto, reconhece que o plano está usando metodologia do Iphan, que é livre e qualquer pessoa pode usar. “Estão usando o nome do Iphan para validar o trabalho, mais nada”, concluiu.

“O Iphan Alagoas nunca foi consultado. Eles [os coordenadores do plano] foram direto para Brasília, não se compreende bem o porquê. Pediram para serem capacitados pelo Iphan de Brasília para fazerem as oficinas com a metodologia do Instituto”.

Por conta disso, “houve até problema interno e tivemos que informar melhor à Brasília as ponderações que fiz acima, mas esse plano nunca teria a nossa participação, pois não concordamos com o que está sendo feito”.

A técnica do Iphan revelou ainda que, em paralelo, conheceu um consultor desse trabalho que veio a Maceió, semana passada. “Ele aceitou o trabalho, mas tem a mesma opinião, quem é da área sabe; quem faz inventário participativo, sabe. Para leigos, parece algo massa, mas não é”.

A especialista em resgate histórico acredita que o comitê gestor fará esse papel, mas o prejuízo é evidente diante do tempo perdido e da falta da participação direta dos técnicos do Iphan Alagoas no levantamento. “Sairá editais, acho que a partir dessa semana ou na outra, mas muita coisa se perdeu com o tempo. Coisas importantes”.

PARTICIPAÇÃO

Na apresentação do plano, o MPF destacou que “a forma como o inventário deve ser feito também observa uma premissa garantida pelas instituições, que é a participação ativa da comunidade”. Para a realização do levantamento dos dados, a equipe da Ufal/Fundepes reuniu 21 agentes, por meio de um chamamento público que privilegiou as pessoas com ligações culturais com os bairros atingidos.

“Esses agentes foram capacitados para realizarem os trabalhos, conforme requisitos exigidos em normativos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), para que, após a conclusão dos trabalhos, o inventário seja disponibilizado no portal da instituição, passando a ser de livre acesso, consulta e conhecimento da sociedade civil”.

“Dessa forma, o IPCI Maceió não apenas registra, mas também garante a memória cultural dessas comunidades, valorizando e fortalecendo a identidade cultural de Maceió e de toda Alagoas. Daí a importância da colaboração de todos que tenham informações, relatos e indícios de saberes tradicionais relacionados à região afetada pela mineração”, concluiu o MPF.

Acrescentando, que “este projeto, além de salvaguardar tradições, pode servir como um modelo para outras cidades enfrentarem desafios semelhantes. Com a colaboração da população e o apoio das instituições, o IPCI Maceió se torna um símbolo de resistência e valorização cultural”.

Chefe da Defesa Civil nega ter mentido na CPI

O chefe da Defesa Civil de Maceió, Abelardo Nobre, negou ter mentido à CPI da Braskem no Senado, conforme foi noticiado pelo portal Tribuna Hoje no último final de semana. Na verdade, ele é acusado de ter mentido para a Defensoria Pública Estadual, num ofício encaminhado a ele pelo defensor público estadual, Ricardo Melro.

“Não há essa denúncia no MP. A denúncia é sobre um ofício encaminhado pela defesa civil, que a Defensoria Pública questiona. Nada a ver com a CPI da Braskem no Senado”, esclareceu a assessoria de comunicação da Prefeitura de Maceió.

O defensor público Ricardo Melro também enviou mensagem à redação da Tribuna Independente, fazendo essa correção. “Na realidade, não foi na CPI da Braskem que ele deu declaração falsa. A declaração falsa dele foi uma resposta a mim em novembro. Eu denunciei isso em dezembro para a imprensa e na CPI”, esclareceu Ricardo Melro.

A denúncia contra Abelardo Nobre, por crime de falsidade ideológica, foi recebida pela Justiça estadual, na quinta-feira, mas divulgada na última sexta-feira.
Abelardo Nobre é acusado pela Defensoria Pública do Estado de Alagoas (DPE) de ter dado declarações falsas, acerca das áreas de risco de afundamento do solo, ao responder ofício endereçado ele pelo defensor Ricardo Melro.

“Fiz essa representação criminal após constatar informações inverídicas prestadas pela Defesa Civil Municipal acerca do Caso Braskem. Absurdo! Tormamos tudo isso público, em rede nacional, em dezembro do ano passado e na CPI do Senado. E agora veio, em boa hora, a excelente denúncia do MPE. Que sirva de lição para que outros órgãos e agentes públicos não façam o mesmo. A luta continua. Ainda vem mais ações do Caso Braskem por aí”, afirmou Ricardo Melro.

OUTRO LADO

Por meio da assessoria de comunicação, a Prefeitura de Maceió enviou essa nota à redação da Tribuna Indpendente, na sexta-feira, defendendo Abelado Nobre, mas sem entrar no mérito da questão. Segue a nota na íntegra:

“A Defesa Civil de Maceió, desde o início da gestão do atual coordenador-geral do órgão, professor Abelardo Nobre, atua de forma estritamente técnica, com responsabilidade e transparência. O órgão reafirma o compromisso com as informações técnicas que são analisadas por uma equipe de profissionais qualificados e se mantém à disposição da população e dos órgãos de controle municipais, estaduais e federais”.

A assessoria da Prefeitura disse ainda ontem que Abelardo Nobre também nega ter mentido para a Defensoria Pública e que está preparando a defesa dele, para contrapor a denúncia feita contra ele pelo MPE, no dia 1º de agosto de 2024, por meio da promotora de Justiça Amélia Adriana de Carvalho Campelo, da 39ª Promotoria de Justiça da Capital, à Vara Criminal de Maceió.