Política
‘Desaparecido político’, maceioense volta ao Banco do Nordeste 52 anos depois
Petrúcio Lages ganhava a vida como escriturário e militava como sindicalista filiado ao Partido Comunista Brasileiro
O golpe militar de 1º de abril de 1964, que contou com o apoio explícito dos EUA e destituiu o presidente constitucional João Goulart (o Jango), deu início a uma era de arbítrios sem precedentes na história no País.
Durante os 21 anos de estado de exceção, mandatos parlamentares foram cassados e a imprensa censurada, enquanto operários, estudantes, funcionários públicos, sindicalistas, militantes de esquerda, professores, intelectuais, artistas e militares legalistas sofreram intensa perseguição.
Entre o final de 1968 e o segundo semestre de 1976 a ditadura estava no auge da violência contra seus adversários. O regime perdera o pouco da timidez que lhe restava transformando sequestros, torturas, mortes e desaparecimento de opositores em descarada política de estado.
Naquele 64, o maceioense Petrúcio Lages, então com 23 anos, ganhava a vida como escriturário do Banco do Nordeste; cursava Filosofia na Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e militava como sindicalista filiado ao Partido Comunista Brasileiro, o velho “Partidão”, que tinha o legendário Luís Carlos Prestes como secretário-geral. Assim como outros companheiros de luta, Petrúcio foi preso nos primeiros dias do golpe. Ficou 97 dias no velho presídio da Praça da Cadeia, demolido em 1969. Solto por falta de provas, mas ainda perseguido, migrou para o Rio de Janeiro. Só voltou a Maceió em agosto de 2016, quando a Justiça o reintegrou ao BN após 52 anos de sua demissão. Durante esse período, foi considerado por muitos em Alagoas como desaparecido político, já que optou por uma clandestinidade estratégica, que incluiu a ausência de qualquer contato com antigos companheiros de militância.
INGRESSO NO BN
Entrei no BN, por concurso, em 1960. Logo, comecei a participar das lutas sindicais. Em 1962, fizemos uma greve histórica, onde obtivemos muitas conquistas, fato que deixou a direção do banco irritada.
Os trabalhadores viviam uma fase de euforia. Sentíamos que Jango estava conosco e que atenderia nossas reivindicações nos campos social, rural e trabalhista. O Comício das Reformas de Base, no dia 13 de março, no Rio, onde o presidente anunciou uma série de medidas para melhorar a vida do povo, provocou reação imediata nas forças de direita, que não aceitavam avanços, principalmente a Reforma Agrária. Os governadores Carlos Lacerda, da Guanabara; Adhemar de Barros, de São Paulo e Magalhães Pinto, de Minas Gerais, mergulharam na conspiração juntamente com militares e empresários patrocinados pelo governo dos EUA.
Petrúcio não se conforma com “golpe à democracia”
Perseguido e sem trabalho em Maceió, migrei para São Paulo e, um mês depois, para o Rio. Lá, tive inúmeros empregos provisórios e ousei inventar uma clandestinidade diferente. Tirei uma nova carteira de trabalho, mas conservando meu nome. Arrisquei pensar que a polícia não daria atenção a um Petrúcio Lages qualquer que morava no Rio. Afinal, pela lógica deles, um foragido mudaria de nome logo que estivesse na clandestinidade. Como eu deixei a militância partidária e nunca mais fui a Maceió encontrar velhos colegas, muitos me tinham como desaparecido político ou mesmo morto. A tática deu certo.
Casado e com três filhos, finquei raízes do Rio. Como cidadão, continuei participando de todos os protestos e manifestações oficiais contra ditadura, como a Passeata dos Cem Mil, em 68; Campanha da Anistia, em 79; Diretas Já, em 84, além de eleições de candidatos que apoiei para presidente, governador e prefeito. Até três anos atrás, trabalhei com vendas de livros pelo Correio por meio de uma editora que montei. Deixei esse trabalho após a implantação de uma ponte de safena e uma retração nas vendas.
Em 1990, iniciei a luta judicial para ser reintegrado ao BN. Depois de muitas idas e vindas, a causa foi ganha este ano. Fui reintegrado em 16 de agosto de 2016. Aos 75 anos, fui muito bem recebido pelos colegas bancários, que me tratam com deferências. Agora, aguardo a aposentadoria com tranquilidade. Pretendo morar em definitivo em Maceió, estou à procura de apartamento para trazer minha esposa. Já meus filhos – duas moças e um rapaz – estão casados e ficarão no Rio.
GOLPE EM 2016
Assim como em 1964, esse golpe foi dado para proteger os interesses da elite dominante e aconteceu num momento em que a classe trabalhadora tinha alcançado avanços significativos. É triste assistir esse retrocesso. É lamentável saber que estamos voltando a ser uma república de bananas, um quintal dos EUA como em passado recente. Estou profundamente deprimido como este golpe. Minha ficha ainda não caiu.
Histórico da ditadura remonta a perseguições políticas
Na tarde de 26 de março de 1964, sob a direção do Comando Geral dos Trabalhadores, sindicalistas e políticos que apoiavam Jango e as Reformas de Base se reuniram no auditório do Sindicato dos Petroleiros, à rua Dois de Dezembro, centro da cidade. Motivo: preparar o comício que receberia, no dia 29, na praça do Pirulito, Leonel Brizola, então deputado federal pela Guanabara, e Miguel Arraes, governador de Pernambuco, ambos aliados do presidente da República.
Ainda durante a reunião, Brizola telefonou avisando que não poderia comparecer naquela data. Já Arraes confirmara. Viajaria de trem no domingo, 29. Sabendo que Arraes viria, usineiros e seus aliados conservadores requisitaram a praça Deodoro para um comício de revanche. Mas temendo atos de violência, o governador Luiz Cavalcante, que era major do Exército, desautorizou ambos os comícios.
Soubemos que o trem conduzindo Arraes seria bloqueado quando entrasse em Alagoas. Dizia-se que policiais e pistoleiros contratados por empresários do açúcar fecharam a divisa com Pernambuco e instalaram explosivos numa ponte ferroviária em São José da Laje. E que outros, fortemente armados, tinham ordens do governo estadual para abrir fogo contra a composição e matar Arraes assim que ele pusesse os pés em território alagoano. Avisado a tempo, o chefe do trem ordenou marcha à ré e voltou para o Recife.
31 DE MARÇO
O Repórter Esso, mais importante jornal de rádio do Brasil na época, informara que tropas do Exército marchavam de Juiz de Fora (MG) em direção ao Rio de Janeiro com a intenção de depor Jango, que estava na cidade sob a proteção de forças legalistas. A notícia agita Maceió. A União Estadual de Estudantes instala autofalantes em sua sede e convoca o povo para uma passeata de resistência às 15 horas do dia seguinte, primeiro de abril.
Assim que o dia amanheceu a repressão estava nas ruas. A primeira vítima foi o semanário Voz do Povo, órgão oficial do PCB, dirigido por Jayme Miranda. Fiquei sabendo que a polícia, juntamente com milícias fascistas, destruíra a redação, agredira gráficos e redatores, quebrara equipamentos e incendiara móveis no meio da rua. Jayme fora preso no mesmo dia. Nilson, irmão dele, que era vereador e presidente do Sindicato dos Radialistas, conseguira fugir. Por ser o mais entusiasmado defensor das Reformas de Jango, Nilson tivera a cabeça posta a prêmio. A polícia tivera ordens expressas para matá-lo.
Eu soube que os petroleiros tentaram se organizar. Que caminhões trouxeram trabalhadores para o centro da cidade. Mas que a polícia foi dura e metralhou um dos veículos, ferindo um operário. Havia um pânico generalizado. Sindicalistas, líderes estudantis e dos trabalhadores estavam desorganizados e tiveram que fugir. Muitos foram presos antes de deixar o estado e atirados na cadeia.
Contava-se que desde 1963 os deputados janguistas Claudenor de Albuquerque Lima e Abrahão Moura Rocha tinham uma boa quantidade de armas para serem usadas na resistência a um possível golpe. Mas eu mesmo nunca vi essas armas. Na verdade, acredito que não tínhamos um único canivete para enfrentar as forças repressivas.
No dia 1º de abril, com a repressão nas ruas, peguei um ônibus no centro da cidade e fui para casa, na Pajuçara. Já próximo do ponto onde eu deveria saltar, vi minhas irmãs acenando, nervosas, para eu não descer. À noite, fui avisado que a polícia tinha estado lá a minha procura. Arrumei a mala e fugi para Palmeira dos Índios, me abrigando na casa de um tio, que não tinha nenhuma militância política, mas que me acolheu com o máximo de atenção. Na cidade, todos se conheciam. Eu, embora saísse pouco de casa, era estranho no lugar. Além disso, o rádio anunciara meu nome como um dos foragidos, avisando que quem abrigasse subversivos seria preso. Um dia, quando estava no escritório do meu tio, fui detido pela polícia, que me conduziu, sob escolta armada, direto para a cadeia pública de Maceió.
Era 20 de abril. Sem qualquer inquérito, boletim de ocorrência ou coisa parecida fui atirado por uma semana na cela dos presos comuns. Porém, fui saudado na minha chegada por Jayme Miranda, que estava na ala dos presos políticos juntamente com Dirceu Lindoso, Rubens Colaço, José Alípio Vieira, José Moura Rocha, Manoel Lisboa Filho, Rosalvo Siqueira, Roland Benamor e muitos outros.
Transferido para a ala dos presos políticos, tive um excelente aprendizado com os mais antigos. Jogava xadrez e tinha lições de práticas sindicais, história, filosofia, artes, etc. Jayme Miranda orientava aos mais jovens que durante o interrogatório todos deveriam jogar a culpa nele, dirigente experiente, sugerindo que, durante os interrogatórios, nós disséssemos que não éramos militantes comunistas e sim apenas democratas e legalistas que haviam protestado contra o golpe. Jayme era uma liderança extraordinária. Tranquilo, equilibrado, corajoso, inteligente e respeitado.
TORTURA E LIBERDADE
Apesar dos interrogatórios constrangedores e ameaçadores, não cheguei a ser torturado fisicamente. Que eu saiba, do nosso grupo apenas Rubens Colaço foi espancado. Mas a prisão em si já é uma tortura moral, principalmente porque foi praticada por golpistas contra legalistas.
Eu e a maioria dos sindicalistas fomos libertados em 23 de julho de 1964, já que não havia provas contra nós. No dia seguinte, voltei a trabalhar no BN, ao mesmo tempo em que respondia a um inquérito administrativo. Na época, nós, do BN, éramos interrogados por auditores em salas do Quartel Geral da PM.
Sem que houvesse direito de defesa e ao contraditório, ou conclusão do processo administrativo, o Diário Oficial da União de 9 de novembro de 1964 trouxe um decreto da ditadura exonerando centenas de servidores dos bancos do Brasil e do Nordeste. Eu era um deles.
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