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O plano frustrado de Guaidó para tirar Maduro racha o chavismo na Venezuela

Um relato das 24 horas em o presidente interino libertou inesperadamente o opositor Leopoldo López com a ajuda de um grupo de militares. Precipitação é criticada por grande parte da oposição

Por Francesco Manetto, Amanda Mars, Javier Lafuente e Alonso Moleiro com El País Brasil 07/05/2019 10h16
O plano frustrado de Guaidó para tirar Maduro racha o chavismo na Venezuela
Reprodução - Foto: Assessoria
Poucos esperavam essa imagem. Ao amanhecer, Juan Guaidó falava à câmera e a poucos metros dele, ao lado de um grupo de militares, Leopoldo López. O preso político mais perseguido por Nicolás Maduro estava livre após cinco anos, três deles preso e dois em prisão domiciliar. Os dois pediam às pessoas que saíssem às ruas e aos militares que abandonassem o líder chavista. Era o amanhecer de terça-feira 30 de abril e a Venezuela se preparava para outro dia definitivo que não aconteceu. Os acontecimentos se sucederam como um turbilhão. As horas seguintes revelaram um complô para derrubar Maduro elaborado durante meses que descarrilhou e evidenciou traições, egos e precipitações. Um plano que mostrou também as rachaduras cada vez maiores na cúpula chavista. Desde que em 23 de janeiro Guaidó tomou posse como presidente encarregado da Venezuela e foi reconhecido por mais de meia centena de países, os acontecimentos se aceleraram. A pressão sobre o Governo de Nicolás Maduro foi constante, com diversos pontos de inflexão. O objetivo sempre foi o mesmo: conseguir com que a alta cúpula militar estivesse disposta a deixar Maduro ser derrubado. Não ocorreu em 23 de janeiro, apesar da oposição e os Estados Unidos mostrarem ao restante dos aliados que o reconhecimento de Guaidó como mandatário interino forçaria uma ruptura na hierarquia militar; também não em 23 de fevereiro, quando fracassou a tentativa de introduzir carregamentos com material médico e suplementos nutricionais pelas fronteiras. A partir do final desse mês a oposição começou a penetrar no entorno de Maduro, tanto do lado civil como do militar, de acordo com uma dezena de fontes – políticas, diplomáticas e do entorno militar – que estiveram envolvidas em diversos momentos. Com seu depoimento, sob condição de anonimato, reconstruimos o que ocorreu na última semana na Venezuela. Durante todo esse tempo, a oposição contou com o apoio de muitos países, mas sempre com o respaldo e impulso da Administração de Donald Trump. “Se algo faz ver que estamos em uma fase de finalização e que isso não tem como voltar atrás é a determinação dos Estados Unidos para retirar Maduro do poder”, afirma uma das fontes. A possibilidade de uma intervenção militar foi constantemente agitada sob a premissa de que todas as possibilidades estão em cima da mesa, repetida tanto por Guaidó como por Washington. Mas com exceção dos setores radicais da oposição e da já por si mesma extrema Administração Trump, essa opção encontrou resistência. Não foi descartada por, em grande medida, manter viva a guerra psicológica e a pressão sobre a cúpula chavista. A penetração em setores próximos a Maduro permitiu a elaboração de um plano pelo qual seria construído um caminho institucional que propiciasse sua saída. Essa passava por uma sentença do Supremo Tribunal de Justiça (TSJ) que facilitasse a convocação de eleições presidenciais nesse ano. O acordo tinha, de acordo com várias das fontes consultadas, o sinal verde de Maikel Moreno, presidente do TSJ; do ministro da Defesa, Vladimir Padrino, assim como do comandante da Guarda Presidencial, Iván Hernández Dala. Também conhecia o plano, segundo pelo menos duas fontes, o ministro do Interior, Néstor. [caption id="attachment_298685" align="aligncenter" width="750"] Uma mulher encoraja um soldado fiel a Guaidó durante as mobilizações (Foto: Fernando Llano/AP)[/caption] “Trabalho bem elaborado”   Chegar até esse ponto foi uma tarefa árdua, “trabalho bem elaborado”, nas palavras de um dos envolvidos. Participaram do processo magistrados do Ministério Público, militares, alguns governadores e empresários, alguns deles ligados aos veículos de comunicação que fizeram fortuna durante o chavismo e que foram protegidos por Maduro nos últimos anos. A pressão foi exercida através de ex-militares dos serviços de inteligência de Hugo Chávez, que hoje moram fora da Venezuela. “O setor mais próximo de Maduro sendo atingido através de seus testas-de-ferro e dos familiares dos conjurados”, afirma uma fonte. Miami, República Dominicana, Bogotá e Panamá são os quatro pontos a partir de onde se exerceu mais pressão. Para propiciar a ruptura com Maduro, todos os envolvidos recebiam garantias diante de uma hipotética queda do líder chavista, de uma anistia por possível crimes, levantamento de sanções por parte dos Estados Unidos e facilidades para abandonar a Venezuela. Após o fracasso da ofensiva dessa semana, o enviado especial de Donald Trump para o país caribenho, Elliot Abrams, afirmou à imprensa que, de acordo com seu conhecimento, existia um documento de garantias de aproximadamente 15 pontos que incluía uma saída “digna” para Maduro. “Durante todo esse tempo foi sendo cooptada gente muito poderosa e a partir daí chegando em pessoas da hierarquia chavista”, resume uma das fontes. Um dos movimentos que demonstrou que o processo era definitivo foi o sinal verde de Vladimir Padrino. O chefe do Exército deixou claro aos envolvidos que não estava disposto a uma quartelada, a uma sublevação, mas não se oporia a uma saída institucional. Duas das fontes consultadas afirmam que seu compromisso era absoluto, se bem que outras tantas discordam e sentem, pelo que foi visto, que fez o papel de agente duplo para derrubar o plano. Padrino, com filhos residentes na Europa, encaixa no perfil de membro do regime que a oposição e o Governo norte-americano consideram viável para realizar um Executivo de transição e para favorecer sua acolhida em países nos quais já se encontram suas famílias. Canais diplomáticos   Com o conhecimento do Governo dos Estados Unidos, foram sendo enviadas mensagens a outros países, como o Canadá, Alemanha e França, “sempre através de canais informais”, frisa uma das fontes. A Espanha, entretanto, não foi informada dos detalhes. A maioria das fontes concorda que, de uma forma ou de outra, apesar de ter impulsionado na Europa o reconhecimento de Guaidó como presidente interino, o Governo de Pedro Sánchez não gerou plena confiança na oposição, porque consideram ambígua sua posição na crise da Venezuela. E isso apesar de Madri reconhecer Guaidó e decidir abrigar López em sua Embaixada. Com a pressão das ruas do lado oposicionista e uma saída forjada na Constituição, a execução do plano era questão de dias, ainda que a maioria das fontes negue que existisse uma data concreta para isso. De modo que na terça-feira, quando Guaidó apareceu de madrugada ao lado de Leopoldo López, libertado, diante da base militar de La Carlota pedindo às pessoas que saíssem às ruas e aos militares que participassem da ofensiva, a surpresa foi maiúscula. A maioria dos consultados utilizou uma expressão muito venezuelana para explicar o que viveram: “Fomos madrugados”. “É incorreto que o plano tenha sido adiantado, porque o que aconteceu nada tinha a ver com o filme que estava sendo construído”, afirma uma das fontes. Por que López e Guaidó se precipitaram ainda é motivo de controvérsia e de versões desencontradas. O entorno dos dirigentes do Vontade Popular afirma que o plano começou a vazar. Dois dias antes, Guaidó começou a suspender de última hora sua participação em um ato em Barquisimeto, capital do Estado de Lara. O temor de serem detidos e presos – López passou três anos na prisão de Ramo Verde antes de ir para o regime domiciliar – fez com que, de acordo com a versão informada por seu círculo, a decisão fosse tomada. “É pouco provável que fossem presos se contavam com o apoio dos que, no caso de López, o vigiavam e ajudaram em sua libertação”, diz uma fonte conhecedora do processo e que foi avisada do ocorrido pouco antes de Guaidó divulgar o vídeo com López. Outra das incógnitas existentes é se os dois dirigente contavam com o apoio dos Estados Unidos. A maioria das fontes afirma que não, que foi uma decisão unilateral de López, com a qual Guaidó concordou pelo peso que seu chefe político tem sobre ele e que foi impulsionada por Christopher Figuera, o diretor do Serviço Bolivariano de Inteligência (Sebin), a polícia política, destituído após os acontecimentos de terça-feira. Os agentes da inteligência venezuelana desenharam a López, de acordo com o relato divulgado pelos protagonistas, um panorama muito mais encorajador da disposição da cúpula do Exército e da alta cúpula da Administração do Estado para virar as costas ao regime. No entorno do dirigente político, entretanto, afirmam que López não teria dado um passo sem o consentimento da Administração de Trump. [caption id="attachment_298686" align="aligncenter" width="750"] Contrários ao regime de Maduro enfrentam a Guarda Nacional Bolivariana em Caracas (Foto: Fernando Llano/AP)[/caption] Gestão dos tempos   A presença do presidente da Assembleia Nacional na primeira linha era crucial para impulsionar a ofensiva de López. Guaidó, que nos últimos meses cumpre uma agenda frenética, se reuniu na quinta-feira com diplomatas europeus. O relato indica que não teve uma participação decisiva na operação, principalmente na gestão dos tempos. “López não estava de acordo com um plano que dava muito protagonismo ao chavismo”, afirma uma fonte conhecedora do processo para explicar o movimento do dirigente do Vontade Popular, que afirmou que foi libertado após um indulto de Guaidó aos presos políticos acatado por seus guardas. Ao contrário do que acontece com grande parte das decisões adotadas por Guaidó como presidente da Assembleia Nacional, nesse caso não foi publicado nenhum documento relacionado ao suposto indulto. No plano acertado com os conjurados chavistas, a libertação de López ocorreu graças a um indulto, mas essa não antecedia os outros passos. O próprio López, refugiado na Embaixada da Espanha em Caracas, reconheceu que sua libertação não rendeu os efeitos esperados. Após o meio-dia, a mobilização nas ruas não era maciça e a fratura no alto escalão militar nunca ocorreu, ainda que o dirigente político tenha afirmado que a tentativa de quebrar a cúpula das Forças Armadas era só um primeiro passo e que nunca foi vista como solução definitiva. O sinal mais indicativo de que a operação havia naufragado chegou após as duas da tarde, quando o Governo de Trump, através do conselheiro de Segurança Nacional, John Bolton, decidiu indicar publicamente as três principais autoridades chavistas envolvidas no plano: Maikel Moreno, Vladimir Padrino e Iván Hernández Dala. Uma fonte presente em parte das negociações prévias com parte da cúpula chavista diz que ao nomeá-los procuravam enviar uma mensagem de força. Já era tarde demais. O suposto avião de Maduro   Pouco depois da intervenção de Bolton, os Estados Unidos redobraram a pressão. O chefe da diplomacia, Mike Pompeo, afirmou que Maduro tinha um avião preparado na própria terça-feira para fugir do país, mas foi dissuadido pela Rússia, um extremo que as fontes venezuelanas acham que não é verdade. No dia seguinte, repetiu que a intervenção militar, ainda que não desejada por Washington, “é possível se for necessária”. Na sexta-feira, o Departamento de Defesa comunicou a realização de uma reunião de alto escalão sobre a Venezuela mantida nessa manhã no Pentágono com o secretário interino, Patrick Shanahan; Pompeo; Bolton, o chefe de gabinete interino de Trump, Mike Mulvaney, e o chefe do Estado Maior Conjunto, Joseph Dunford, entre outros. Nela, o chefe do Comando Sul, Craig Faller, informou sobre “uma ampla variedade de opções militares”. Pelo menos três fontes, duas políticas e uma próxima ao âmbito militar, interpretam a atuação dos Estados Unidos como uma maneira de esconder o fracasso para não ter que admitir e evitar deixar em evidência a oposição, que nesse momento tentava se juntar e pretendia transmitir uma mensagem de unidade que estava bem distante de ser real. Em muitos setores, principalmente nos partidos Primeira Justiça – do ex-candidato presidencial Henrique Capriles e Julio Borges, exilado na Colômbia – e Um Novo Tempo, há um claro mal-estar pela ação de López. O dirigente do Vontade Popular é criticado – novamente – por ter se precipitado e, nesse caso, turvar um acordo institucional para formalizar uma mudança política e um governo de transição. De acordo com a maioria das fontes consultadas, a atuação de López, com suas pretensões de protagonista, congelou o plano inicial, como deixou subentendido o próprio Elliot Abrams ao afirmar que nenhum dos conjurados atendia mais o telefone. Os atores fundamentais da oposição estão muito relutantes em comentar o ocorrido de 30 de abril. Predomina o hermetismo e a ideia de manter o foco político no que se aproxima e não perder energias trocando acusações. Alguns observadores, funcionários e dirigentes ligados à oposição opinam que, ainda que o germe do mal-estar continue vivo em todos os atores e o coração do alto escalão do Governo tenha ficado ao lado de Maduro, ainda existe uma oportunidade para voltar a construir um plano de transição. De fato, esses mesmo atores – todos críticos ao chavismo – afirmam que, apesar do fracasso da ofensiva de terça-feira, ela evidenciou que Maduro é cada vez mais frágil e os que estão dispostos a deixá-lo cair estão tão temerosos das represálias que poderiam acelerar qualquer outra opção que cause sua saída. Uma pessoa profundamente envolvida nesse processo utilizou nessa semana uma expressão venezuelana para resumir o que ocorrerá a partir de agora com os conjurados: “Ou correm ou vão com tudo. Estão literalmente arriscando a pele”.