Interior

'Ser uma comunidade quilombola significa muita coisa, principalmente a força e a coragem de lutar'

Do autoconhecimento à espera por titulação, comunidades quilombolas Mendes e Vila Carão travam há dois anos uma batalha contra a burocracia para garantir território, políticas públicas e o direito de existir com orgulho

Por Leandro da Silva Jeronimo, Catarina Tenório, Mylena Medeiros e Sara Ferreira / Jornalismo Ufal 07/11/2025 03h19
'Ser uma comunidade quilombola significa muita coisa, principalmente a força e a coragem de lutar'
Comunidade Quilombola Mendes - Foto: Arquivo pessoal

Em Poço das Trincheiras, no Sertão de Alagoas, a busca por reconhecimento oficial, território e visibilidade das comunidades quilombolas Mendes e Vila Carão é uma lição de paciência e persistência. Há aproximadamente dois anos, elas iniciaram um processo burocrático que começa com um ato de autoafirmação e pode levar anos até a conquista definitiva do território. “O reconhecimento de uma comunidade quilombola tem início quando ela própria se identifica como remanescente de quilombo”, explica Augusto Júnior, coordenador municipal de Promoção da Igualdade Racial de Poço das Trincheiras e porta-voz no processo.

Esse ato desencadeia um pedido à Fundação Cultural Palmares, que emite um certificado de autodefinição. Só então o processo avança para o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), onde são realizados estudos aprofundados para delimitar o território e a origem da comunidade. “Embora seja um procedimento prolongado, ele é essencial para a garantia dos nossos direitos”, afirma Júnior.

Um dos líderes das comunidades destaca que esse sentimento de luta é o que define a identidade dos quilombolas. “Ser uma comunidade quilombola e fazer parte dessa história significa muita coisa, principalmente a força e a coragem de lutar que os quilombos têm, com coragem, força e fé”, declara Luciano Honorato, líder da comunidade Mendes. A comunidade de Luciano também carrega o mistério sobre suas origens mais profundas. “Conta-se que, onde hoje é Mendes, antes era conhecido como Mocó. Mas Mendes tem uma história; só que nós, da comunidade, ainda não conseguimos descobrir a verdadeira origem do nome”, relata o líder.

A burocracia do Estado e a força da comunidade

Atualmente, as duas comunidades estão imersas na fase mais delicada do processo: a coleta e a organização de documentos. É necessário reunir a ata de autodefinição, o estatuto e o CNPJ da associação, além da lista das famílias e de um requerimento formal à Fundação Cultural Palmares. “As principais dificuldades incluem a burocracia, a escassez de informações técnicas e os custos com documentação e deslocamentos”, detalha Júnior.

Enquanto a batalha jurídica pelo reconhecimento segue seu curso, as comunidades enfrentam desafios imediatos. Luciano destaca que um dos principais problemas que assolam Mendes é a falta de água. Humberto, da Vila Carão, complementa dizendo que a sobrevivência, hoje em dia, é um dos desafios centrais que eles enfrentam.

A resistência, porém, não está apenas nos papéis. Como afirma Luciano, ela está enraizada na cultura e na fé que mantêm as comunidades unidas há gerações. Ele completa: “Confiança, força, fé, união e sabedoria para poder debater, conversar e saber dos nossos direitos e saberes.”

Essa força se revela nas tradições, como no mês de dezembro, quando ocorre o Tríduo de Santa Luzia em uma comunidade vizinha. Mensalmente, a “Mãe Rainha” visita cada casa e, no dia 18, o Dia da Aliança é marcado por rezas comunitárias. A culinária também é um patrimônio essencial, com muito milho cozido, bolo de milho, milho assado, canjica, umbuzada e cocada de coco licuri.

Além disso, existe a equipe de futebol Mendes F.C., que disputa partidas contra outras equipes da região. O artesanato também se destaca como uma importante expressão cultural de Mendes, com a confecção de tapetes de sacola, aiós de croá e fogões de argila — manifestações que fortalecem o sentimento de pertencimento.

Na Vila Carão, a essência é a mesma, como descreve Humberto: “Tudo o que se refere às ancestralidades devemos preservar. Mas a união é o mais primordial para manter o equilíbrio entre nós.” Vale destacar que Vila Carão conta, ainda, com uma rezadeira que atende tanto os moradores locais quanto os de regiões próximas, fortalecendo os laços por meio dos saberes tradicionais.

Esperança no futuro

Apesar do caminho árduo, vitórias importantes sinalizam o progresso. Para Luciano Honorato, líder da comunidade Mendes, a criação da Coordenação Municipal de Promoção da Igualdade Racial é motivo de orgulho. Essa conquista é fundamental, pois, como explica Augusto Júnior, coordenador da pasta, ela tem contribuído para o avanço das etapas de reconhecimento, ajudando a enfrentar a burocracia e a falta de informações técnicas.

A grande conquista veio após uma mobilização das comunidades na Câmara de Vereadores. Humberto também já vislumbra o fim da primeira grande etapa: “No momento, estamos nos processos finais para sermos reconhecidos pela Fundação Cultural Palmares. Já será uma grande conquista quando isso acontecer”, declara.

Para Augusto Júnior, o significado é ainda mais profundo: “Esse reconhecimento simboliza resistência, justiça e dignidade. Ele representa a validação da história de nossos ancestrais, que lutaram para sobreviver e deixar este legado.” Ele complementa, salientando que ser reconhecido oficialmente como uma comunidade quilombola é também afirmar a identidade, a cultura e o direito de existir com orgulho e respeito.

Enquanto aguardam o desfecho final da burocracia, a resistência de Mendes e Vila Carão segue viva, alimentada pela coragem de seus líderes e pela força de suas tradições. A luta é por um futuro em que o direito de existir e prosperar em seu território seja, finalmente, reconhecido não apenas no papel, mas na prática do dia a dia.