Interior

Historiadores querem Calabar reconhecido em livros como herói

Personagem histórico foi absolvido em julgamento simbólico ocorrido na cidade de Porto Calvo, 383 anos após sua morte

Por Claudio Bulgarelli com Tribuna Independente 24/07/2018 08h17
Historiadores querem Calabar reconhecido em livros como herói
Reprodução - Foto: Assessoria
Em 1635, Domingos Fernandes Calabar foi submetido à forca, teve seus restos mortais esquartejados e espalhados em praça pública. Em 22 de julho de 2018, 383 anos depois, em julgamento simbólico realizado na mesma cidade onde morreu, Porto Calvo, Região Norte de Alagoas, foi absolvido e deixou para trás a alcunha de traidor e passou a ser herói nacional. Agora, professores, historiadores e todos os que participaram do julgamento buscam a reabilitação e reconhecimento histórico do polêmico personagem da história da presença holandesa no Nordeste brasileiro. Primeiro passo após o julgamento histórico será a produção do documentário e um livro que será escrito sobre o personagem, inserido na história da época e todos os passos que levaram ao julgamento e ao seu resultado. O reconhecimento oficial, no entanto, apesar de historiadores, professores e jornalistas apoiarem essa tese por unanimidade, deverá levar um pouco mais de tempo. A secretaria de educação de Porto Calvo, Maria Terezinha, responsável pela organização desse processo histórico, afirmou logo após o julgamento que vai marcar reunião entre o prefeito, o Ministério Público Estadual e demais parceiros envolvidos para avaliar o evento como um todo e quais decisões serão tomadas para o reconhecimento oficial de Calabar dentro dos livros oficiais sobre a História do Brasil. Já o prefeito de Porto Calvo, David Pedrosa, disse que foi um dia histórico para todos os alagoanos. “Nosso conterrâneo Domingos Fernandes Calabar tornou-se herói nacional em julgamento histórico em nossa cidade. Como gestor fiquei muito feliz em proporcionar esse ato tão importante para a história. Agora vamos em busca do reconhecimento oficial e nacional.” O historiador Douglas Apprato, que participou do corpo de jurados e defendeu a tese da inocência, em sua colocação foi categórico ao colocar o personagem dentro do momento histórico em que aconteceu sua escolha. O escritor Rostand Lanverly, presidente da Academia de Letras Alagoana, também do corpo do júri, defendeu a inocência de Calabar e o colocou como um herói tanto em sua época como na atualidade. O advogado e historiador Ney Pirauá, levou ao julgamento a tese de que, àquela época, no século XVI, havia muitos países interessados no Brasil e que, portanto, Calabar apenas escolheu um lado para servir. Em sua veemente defesa, reafirmou a tese, que saiu vencedora, e que transformou Calabar de traidor “lusitano” e herói “flamengo” em herói brasileiro. Já a juíza Fátima Pirauá, da 28° Vara Cível da Capital - Infância e Juventude, que também atuou como jurada, acredita que a reabilitação de Calabar, mesmo que tardia, seja um dever da nação e um reconhecimento histórico ao personagem. Todos estão convictos de que os próximos passos, além do livro e do documentário, que será patrocinado por todos os parceiros, vai ser mudar os registros os históricos da própria história do Brasil com o objetivo de reabilitar Calabar como herói, não mais como herói “´flamengo” e sim herói brasileiro. A voz dissonante foi do procurador de justiça Geraldo Magela, que atuou como advogado de acusação. Ele sustentou a tese de que Calabar foi considerado traidor dos portugueses que já estavam colonizando o Brasil por ter se aliado aos holandeses, que também queriam invadir o nosso brasileiro. “Porque foi atrás dos holandeses, que também queriam colonizar o país, em troca de receber vantagens pessoais. Esse pacto teria facilitado, de fato, a entrada da Holanda em solo brasileiro. Trata-se de um personagem que não agiu como brasileiro e, se assim o fez, ele traiu os valores nacionais. Entendo que não houve proposta por parte dos holandeses. O que ocorreu, na verdade, foi a traição propriamente dita, onde o réu foi em busca de alguma vantagem e a conseguiu posteriormente. Ele se ofereceu espontaneamente”, garantiu Magela. Julgamento simbólico começou às 10h e terminou depois das 16h   O julgamento simbólico, pós-morte de Calabar, durou praticamente o dia inteiro desse histórico dia 22 de julho, 383 anos depois da morte do polêmico personagem. Começou às 10 horas da manhã, com intervalo para almoço e só terminou depois das 16 horas. No final do julgamento foi absolvido e proclamado herói nacional com 14 votos favoráveis e uma abstenção. Depois da sentença proclamada pelo presidente do júri, Ney Alcântara, os participantes, convidados e mais de 300 pessoas que assistiram tudo por um telão instalado na parte externa do Fórum, defenderam que sejam feitas as alterações nos livros de história que ainda tratam Calabar como traidor. [caption id="attachment_119500" align="aligncenter" width="600"] Sentença foi proclamada pelo presidente do júri, juiz Ney Alcântara, no Fórum da cidade de Porto Calvo (Foto: Ascom/Porto Calvo)[/caption] O corpo de jurados formado por 15 pessoas incluía os jornalistas Ênio Lins e Maurício Silva; o historiador Douglas Apratto e Sávio de Almeida, o escritor Severino Ramos Barbosa; o professor Valdomiro Rodrigues, o procurador-geral de justiça Alfredo Gaspar de Mendonça Neto; o procurador de justiça Márcio Roberto Tenório; o professor Zezito Araújo; a juíza Fátima Pirauá, o prefeito de Maragogi Fernando Sérgio Lira; os representantes da Polícia Civil Valdomiro Rodrigues e Severino Barbosa, a professora de Filosofia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) Maria Aparecida de Oliveira; a líder indígena Graciliana Wakanã, da tribo Xucuru Cariri e o presidente da Academia Alagoana de Letras Rostand Lanverly. De acordo com o conselho de sentença, composto por especialistas em história e direito, o portocalvense, ao apoiar a invasão holandesa, acreditava que estava defendendo a liberdade brasileira do domínio de Portugal, já que a Holanda poderia trazer benefícios econômicos ao Brasil. Os votos dos jurados foram abertos e seguiram a ordem de um sorteio feito pelo juiz Ney Alcântara, que presidiu o julgamento. Das 15 pessoas que compuseram o júri, 14 votaram pela absolvição, enquanto o cônsul honorário de Portugal em Alagoas, Edgard Barbosa, optou pela abstenção. Durante muito tempo, Calabar foi julgado pela história como traidor   Observando a trajetória da colonização do Brasil, temos a presença de um interessante personagem ligado ao momento em que os holandeses invadiram o Brasil. O proprietário de terras alagoano Domingos Fernandes Calabar foi, durante muito tempo, julgado pela historiografia como sendo um execrável traidor que facilitou a instalação do domínio holandês em terras brasileiras. Nascido no final do século XVI, este homem viveu sob a égide das imposições da administração colonial lusitana. Ao longo de sua vida, recebeu a educação fortemente religiosa dos padres jesuítas e trilhou seu caminho até alcançar a condição de senhor de engenho. Em 1630, quando os holandeses tentavam adentrar o território pernambucano, este membro da elite colonial ingressou nas forças portuguesas comandadas pelo português Matias de Albuquerque. Este último, servido pela Coroa Luso-espanhola, organizou várias guerrilhas que impediriam a entrada dos holandeses no Brasil. Calabar viveu um instigante dilema que vagueava entre sua insatisfação com a falta de reconhecimento dos líderes lusitanos e as recompensas financeiras oferecidas pelos flamengos a todo aquele que ajudasse no projeto de dominação holandês. Em 22 de abril de 1632, se aliou ao “inimigo” oferecendo prontamente valiosas informações que dariam importante vantagem aos holandeses contra os colonizadores. O auxílio de Calabar foi de fundamental importância para que várias regiões das capitanias de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte fossem dominadas pelos holandeses. Segundo algumas pesquisas, a importância de sua desenvoltura chegou a ser elogiada por alguns dos líderes que lutavam do lado holandês. Apesar de bem sucedido, Domingos Fernandes Calabar acabou sendo vítima da mesma dubiedade que o levou a lutar pela Holanda. Em 1635, Calabar e seus companheiros participavam de uma batalha contra lusitanos na região de Porto Calvo, atual Alagoas. Em meio aos conflitos, o nativo Sebastião do Souto se dirigiu para o lado holandês jurando fidelidade e delatando a presença de um pequeno agrupamento de forças inimigas. Na verdade, a informação de Sebastião do Souto era falsa e fazia parte de um complô anteriormente armado contra os invasores holandeses. A emboscada cumpriu seu objetivo. As forças holandesas foram derrotadas nesta batalha e Calabar acabou sendo capturado pelo lado que um dia defendeu. Acusado de traição, foi alvo de um rígido processo judicial que resolveu puni-lo com a própria morte. No dia 22 de julho de 1635, Domingos Fernandes Calabar – o “herói” flamengo e “traidor” lusitano – foi submetido à forca, teve seus restos mortais esquartejados e espalhados em praça pública. NAS ARTES Em 1960, o escritor João Felício dos Santos, nascido no Rio de Janeiro em 1914, publicou um livro sobre Domingos Fernandes Calabar, intitulado “Major Calabar”. Trata-se de um sólido romance histórico sobre a presença holandesa no Brasil e, sobretudo, tendo como fio condutor a insólita e controversa figura de Calabar. Segundo o autor, com o tempo, a história vai se gastando e vira ficção, enquanto a lenda, por conter em si força e colorido, cresce e vira realidade. O compositor Chico Buarque, junto a Ruy Guerra, fez em 1973 uma peça teatral intitulada Calabar: o Elogio da Traição, na qual pela primeira vez a condição de traidor de Calabar era revisitada. O autor, jornalista e historiador alagoano Romeu de Avelar (1893–1972) foi o primeiro a escrever um livro sobre o personagem (intitulado Calabar), em 1938, contestando a ideia de que Calabar teria sido de fato, um traidor. Na época foi considerado subversivo e apreendido pelas autoridades. Nele, o autor corajosamente argumenta que Domingos Calabar, por ter sido brasileiro e não português tinha todo o direito de escolher de que lado lutar. Avelar mostra ainda um Calabar não apenas corajoso, mas também um patriota. Segundo o autor, Domingos Fernandes Calabar foi um insurreto e um clarividente que se antecipou à revolução histórica e liberal do Brasil. O livro foi editado novamente em 1973 um ano após a morte do autor.