Educação
Tese de doutorado de egressa da Ufal aborda mulheres negras no jornalismo
Defesas de teses fazem parte do rito das universidades e portanto são fatos rotineiros, certo? Bom, não é bem assim. Toda tese traz, além do conhecimento teórico sistematizado, muitos ingredientes de dedicação, horas não dormidas, ansiedades e torcidas dos amigos, que transformam cada apresentação à banca em um momento de muita ansiedade, emoção e vitória por concluir uma importante etapa da vida acadêmica.
Quando a defesa é de uma mulher, profissional do jornalismo, que vive na correria em busca da notícia, que faz um esforço para se dedicar à pesquisa, então, esse momento é ainda mais especial. Foi assim no dia 27 de fevereiro deste ano, quando mais de 50 pessoas se reuniram virtualmente para acompanhar a defesa da tese “Racismos nas trajetórias escolares e profissionais de jornalistas negras”, da jornalista Carla Serqueira.
Carla é formada em Jornalismo pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e fez o doutorado no Programa de Pós-Graduação de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sob a orientação da professora Suzy dos Santos. A professora Lídia Ramires, do curso de Jornalismo da Ufal, também compôs a banca, junto com Márcia Cruz (UFMG), Rosane Borges (USP) e Giovana Xavier (UFRJ).
Durante a pesquisa, Carla entrevistou 137 jornalistas e todas foram convidadas para a defesa. “Entendo que discutir as condições de formação e de trabalho de jornalistas negras é de interesse público e compartilhar os resultados da pesquisa com o maior número de pessoas é meu dever, enquanto estudante, principalmente de universidade pública. Para além da banca avaliadora, meu compromisso é entregar conhecimento para a sociedade”, ressalta a jornalista.
A pesquisadora acredita que o interesse pela apresentação também se deve à relevância do tema e à falta de pesquisas acadêmicas que trazem a perspectiva das jornalistas negras como centro nas análises teóricas. “Os poucos dados quantitativos e qualitativos sobre as mulheres negras no jornalismo despertam a curiosidade por estas estatísticas e depoimentos. Meu trabalho traz dados e relatos das trajetórias das jornalistas negras, desde a vida escolar, passando pela formação superior, até as relações vivenciadas no mercado de trabalho”, detalha Carla.
Nas entrevistas, as jornalistas narram as próprias vivências. “Entendo que, tanto o desejo das jornalistas negras de se posicionarem em primeira pessoa no discurso acadêmico, quanto a vontade de ouvi-las por parte de quem busca compreender as relações raciais na profissão, contribuem para que a tese desperte o interesse não só de estudantes e pesquisadoras, mas de profissionais e do público em geral. De todas as pessoas que almejam um jornalismo sem machismo e antirracista”, declara a pesquisadora.
O percurso da tese
Carla Serqueira formou-se em Jornalismo, em 2004, pela Universidade Federal de Alagoas. Entre 2005 e 2014, trabalhou como repórter do jornal Gazeta de Alagoas, na maior parte dos anos na editoria de Política. “Após quase dez anos de redação, comecei a me sentir estagnada na profissão. E isso, num contexto de declínio dos jornais impressos e da transformação digital no jornalismo. Neste período, resolvi me aproximar da carreira acadêmica. Fiz o mestrado em Sociologia, entre 2014 e 2016, na Ufal, e entre 2017 e 2023, cursei o doutorado em Comunicação e Cultura na UFRJ”, narra a jornalista.
Carla conta que entrou no doutorado com a proposta de pesquisar a cultura do estrupro na mídia, mas depois resolveu mudar para a imprensa feminista nos séculos XIX e XX no Brasil. “Com os resultados dos estudos, realizei o estágio docência e ministrei uma disciplina na graduação em Comunicação Social da UFRJ, em 2018. Mas eu ainda não estava segura de que este seria o tema da tese. Sentia falta de interagir com a atualidade, de entrevistar pessoas”, relata.
Com a pesquisa bibliográfica, Carla percebeu como era desafiador mapear a presença de mulheres negras na imprensa, por causa dos apagamentos históricos sobre a população negra no Brasil. “Estudei na UFRJ entre 2017 e 2018. Tive aulas com a professora Giovana Xavier, na UFRJ, e com ela entendi que não tinha sentido falar de mulheres sem tratar das questões raciais. Estava metida nesta confusão de mudar novamente de tema, na metade do doutorado, quando voltei a morar em Maceió”, conta a pesquisadora.
Foi então que entrou no percurso da tese, uma personagem decisiva para a definição do tema. “Em agosto de 2019, quando Ariane Félix, então estudante de jornalismo da Ufal, me ligou, convidando para uma mesa de debates no evento que ela estava organizando para a Bienal do Livro, o Intercomunica. Fiquei animadíssima. Ariane Félix, uma mulher negra, feminista, antirracista, me reconectou com as minhas memórias afetivas dos tempos de graduação. Aceitei o convite dela na hora”, relembra Carla.
E continua… “Eu não a conhecia pessoalmente. Trocamos algumas mensagens, eu já envolvida com o evento, sugerindo, a pedido dela, outros nomes para as mesas e temas. Umas três semanas depois, veio a notícia trágica. Ariane, 27 anos, foi vítima de suicídio decorrente da depressão. Sua partida me comoveu bastante. Na tentativa de saber um pouco mais sobre ela, vi postagens em seus perfis pedindo por estágios. Foi quando percebi que tinha achado uma questão para a tese: quais são as condições para as mulheres negras exercerem o jornalismo?”, relata Carla.
Segundo a pesquisadora, as pesquisas que traçam o perfil dos jornalistas no Brasil não dão conta de aprofundar nas condições de trabalho para as mulheres negras. As pesquisas que tratam de mulheres no jornalismo também não dão conta de abordar as questões de gênero entrelaçadas com as questões de raça. “Então, posso dizer que, despertada pela breve passagem de Ariane Félix em minha vida, decidi me dedicar ao tema”, revela Carla Serqueira.
Neste momento, quando Carla falou sobre esses caminhos e descaminhos da escolha do objeto da pesquisa, a emoção foi evidente em todas as mulheres, professoras, jornalistas, que acompanharam a defesa e sabem muito bem os enormes desafios para as mulheres negras na vida pessoal e profissional. “Ao invés de focar apenas na carreira, busquei compreender as violências que são impostas às mulheres negras pelo racismo estrutural, desde a vivência escolar até o ingresso ou não no mercado de trabalho como jornalistas”, conclui Carla Serqueira.
A tese estará disponível no repositório digital da UFRJ em breve, depois dos ajustes solicitados pela banca. Carla Serqueira espera que o trabalho possa contribuir com outras pesquisas nessa temática. Se depender do entusiasmo com que a tese foi recebida, provavelmente será uma referência para outros trabalhos. A professora Dione Moura (UnB), que não pode comparecer à banca, por questões de saúde, enviou seu parecer por escrito, com a seguinte avaliação: “A tese é absolutamente brilhante. Repito: brilhante. Brilhantismo espelhado em diversas dimensões”.
Diante dessa declaração de uma reconhecida pesquisadora e jornalista negra, doutora em Ciências da Informação e professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UnB, só podemos concluir com: Parabéns, doutora Carla Serqueira!
Leia também: a dissertação de Carla Serqueira sobre mulheres presas por tráfico de drogas em Alagoas, disponível no link.
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