Cidades
Coleção Perseverança, com acervo em Alagoas, recebe tombamento definitivo
Composto por 211 objetos sagrados, acervo foi inscrito em três Livros do Tombo
Considerada o documento mais importante para a memória religiosa afro-alagoana, a Coleção Perseverança foi tombada definitivamente pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). O reconhecimento foi aprovado por unanimidade na terça-feira (12, durante a 106ª Reunião do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural. Com a decisão, a coleção será inscrita no Livro do Tombo das Belas Artes, no Livro do Tombo Histórico e no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, pelo seu valor etnográfico.
O acervo, que já havia recebido tombamento provisório em 22 de julho de 2024, está sob a guarda do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas (IHGAL) desde 1950. Já protegida em nível estadual, a Coleção Perseverança é composta por 211 objetos sagrados que resistiram ao Quebra de Xangô, episódio ocorrido em 1912, no qual terreiros de Maceió (AL) e adjacências foram atacados por questões políticas. Entre os rumores que circulavam, destacava-se a suposta associação do governador da época, Euclides Malta, às Casas de Axé, com alegações de que essas instituições estariam exercendo influência sobre a administração do governo estadual.
Em meio ao racismo estrutural do Brasil no período pós-abolição, essa ligação gerou indignação entre a população de Alagoas contra o governador e, consequentemente, contra as casas religiosas, que passaram a ser alvo de ataques. Vários objetos sagrados — utensílios e adornos, vestes litúrgicas e instrumentos utilizados nos cultos — foram retirados de seus locais e jogados no meio da rua. Alguns desses itens foram guardados para serem exibidos como troféus, enquanto outros foram levados em tom de zombaria em um cortejo rumo a outras casas de Xangô nas redondezas.
“O valor histórico da Coleção Perseverança foi atribuído como mediação tangível da ancestralidade vítima do Quebra de Xangô de 1912 e, nesse sentido, como memória sensível da repressão nacional a terreiros e aos religiosos e religiosas de matriz africana, amparada pela legalidade imposta pelo Código Penal de 1890. Seu valor histórico ecoa nos inúmeros casos brasileiros de perseguição religiosa institucionalizada contra o Povo de Axé ao longo do período republicano”, analisou o técnico do Iphan em Alagoas, Maicon Marcante.
Herança etnográfica
Durante o processo de tombamento, a participação social foi viabilizada por meio da criação de um Grupo de Trabalho (GT), composto por lideranças do Povo de Santo, técnicos do Iphan em Alagoas e representantes de instituições parceiras. O GT implementou metodologias participativas, permitindo que os próprios religiosos desempenhassem um papel central na atribuição de valores e significados culturais à coleção, além de colaborar na formulação de diretrizes para a etapa de pós-tombamento. As atividades do grupo incluíram entrevistas com membros do Povo de Santo, participação em eventos religiosos e visitas a terreiros em Maceió e no interior de Alagoas.
“Diversos babalorixás e ialorixás participaram desse processo e fico feliz em vê-los se reconhecendo em cada objeto da Coleção Perseverança. Para nós, é importante que nossos filhos, netos, bisnetos e a nossa futura Família de Axé também se vejam nessas peças. Neste sentido, o tombamento significa que o Estado brasileiro reconhece que esses objetos sagrados e sacralizados, que foram roubados dos espaços religiosos dos nossos ancestrais, merecem cuidado”, declarou o babalorixá e membro do Grupo de Trabalho, Pai Célio.
Os estudos realizados pelo GT demonstraram que a Coleção Perseverança possui um relevante valor etnográfico, sobretudo quanto ao potencial interpretativo dos elementos, práticas e rituais que compõem as cerimônias religiosas de matriz africana em Alagoas, especialmente no período anterior ao Quebra de Xangô. Os objetos do acervo também revelam que os povos africanos que participaram da formação cultural do Nordeste brasileiro, incluindo Alagoas, eram provenientes de diversas etnias e regiões do continente africano. Isso desfaz a ideia inicial de que apenas um grupo específico teria exercido influência predominante, mostrando a diversidade cultural presente nesse processo. Além disso, os itens evidenciam os indícios da presença de grupos islamizados em Maceió e arredores.
A inclusão de instrumentos musicais também reforça as conexões culturais com os maracatus e outros grupos associados aos terreiros alagoanos desde o período pré-Quebra de Xangô. Porém, o valor etnográfico da Coleção Perseverança vai além do seu passado, sendo constantemente ressignificado e reapropriado no presente, como se observa nas manifestações culturais atuais, incluindo maracatus, afoxés e as interações com a Nação Xambá, expressão religiosa de Pernambuco.
Relevância estética
A Coleção Perseverança se destaca como um acervo de arte sacra afro-brasileira, evidenciando tanto a dimensão artística quanto o caráter religioso presente em seus objetos. Cada objeto carrega consigo uma narrativa de vida do povo afro-brasileiro, conectando religião, terra natal e a própria essência do fazer artístico.
O acervo não só reafirma a importância da estética das religiões de matriz africana, como também estabelece uma relação direta com expressões artísticas tradicionais do Nordeste brasileiro, como a arte santeira - esculturas de imagens sacras em madeira - e os ex-votos - presentes dados pelos fiéis ao santo de devoção. Como avaliou o membro do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas (IHGAL), Fernando Gomes, “o imaginário sacro e popular da região muito se aproxima, em estilo e técnica, da forte herança dos africanos”.
Deste modo, a Coleção Perseverança se consolida como um dos mais importantes acervos de arte sacra do Brasil, no qual o sagrado e o estético se entrelaçam em cada peça.
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