Cidades
Furto motivado pela fome pode ser perdoado pela lei
Caso de uma mulher que ficou presa 14 dias após furtar alimentos levantou debate sobre o furto famélico; ausência de políticas públicas agrava o problema social

O aumento da pobreza no Brasil, motivado pela crise econômica somada à pandemia da Covid-19, fez crescer também os casos de pessoas que são presas por roubar alimentos e produtos de primeira necessidade. O caso recente que mais chamou a atenção foi o da desempregada Rosângela Sibele Melo, 41 anos, que ficou presa durante 14 dias, após ser flagrada furtando cerca de R$ 20,00 em alimentos em um supermercado de São Paulo (SP).
O argumento alegado inicialmente para que ela fosse mantida presa foi o de que ela seria reincidente, mas ela só foi solta após o Superior Tribunal de Justiça (STJ) acolher um habeas-corpus da Defensoria Pública Estadual de São Paulo, que evocou o “princípio da insignificância” do valor roubado, diante da situação de miséria vivida por Rosângela, que é mãe de cinco filhos e também dependente química. “Quando eu roubei, não pensei muito. Estava com muita fome. Só pensei em comer”, disse ela ao sair da prisão.
Furto famélico
“Furto famélico” é o termo utilizado para caracterizar o furto de alimento, medicamento ou qualquer outro produto necessário para a sobrevivência, sem uso de violência. Ele não se caracteriza como crime quando, quem furta, precisa do que foi furtado para sua necessidade imediata. No entanto, ainda assim, é possível observar que pessoas continuam sendo presas, como ocorreu com a desempregada em São Paulo. Como previsto no artigo 155 do Código Penal, o furto é uma ação criminosa que prevê punição ao infrator, com exceção do que é motivado pela falta de alimentos.
O advogado criminalista Rodrigo Ferro, professor de Direito Penal do Centro Universitário Tiradentes (Unit Alagoas), afirma que “o senso comum não costuma perdoar o dito ‘ladrão’, sujeito que ousa subtrair patrimônio alheio, ao invés de conquistá-lo”. Contudo, ele pondera que a motivação de toda e qualquer ação tida como criminosa deve ser observada.
“Uma delas é o furto famélico, ou furto pela fome, pela sobrevivência própria ou de algum ente querido e, aqui, a conduta que à primeira vista poderia ser vista como um ato criminoso perde por completo o caráter delitivo, enquadrando-se numa das causas que o próprio Código Penal permite como sendo uma excludente de ilicitude, pelo estado de necessidade que o indivíduo está passando, como previstos nos artigos 23, inciso I, e 24”, argumenta Ferro.
Fome e castigo
O professor salienta ainda que, na grande maioria dos crimes famélicos, a subtração de produtos é de pequena monta. “Neste caso já justificaria a não punição do agente pelo princípio da bagatela, ou insignificância, no qual se reconhece que sequer há materialidade delitiva, ou seja, não há crime. Contudo, constantemente vemos prisões e até condenações por esse tipo de crime, o que fere a lei”, avalia.
Um exemplo disso, citado pelo professor, foi um caso ocorrido em Uruguaiana (RS) que também gerou críticas e indignação até nos meios jurídicos: um promotor do Ministério Público recorreu de uma decisão que absolveu dois homens que teriam praticado o furto famélico em 2019, na área de descarte de um supermercado da cidade. “O que se vê, neste caso, é a face mais triste do punitivismo desenfreado, que desconsidera a legislação e o bom senso, punindo-se alguém em claro estado de necessidade, e pior, em conduta que sequer é típica, pois lixo descartado não pode ser considerado sequer patrimônio a ser protegido”, conclui Rodrigo.
O direito à alimentação é constitucional, previsto pela Emenda Constitucional nº 64, que incluiu a alimentação entre os direitos sociais, fixados no artigo 6º da Constituição de 1988. Ou seja, é Lei e cabe ao Estado prover uma alimentação adequada a todos os cidadãos, Entretanto, mais de 19 milhões de brasileiros encontram-se em estado de insegurança alimentar grave, segundo pesquisa da Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Penssan) realizada em dezembro de 2020 e divulgada pelo site UOL.
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