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Caso Delmiro Gouveia: reviravolta do assassinato do visionário recontada em livro

Relato emocionante do desembargador e jornalista Antônio Sapucaia, que morreu esta semana, em sua última entrevista, ao contar sobre o que viu de um dos maiores erros do Judiciário brasileiro

Por Wellington Santos com Tribuna Independente 05/10/2019 10h04
Caso Delmiro Gouveia: reviravolta do assassinato do visionário recontada em livro
Reprodução - Foto: Assessoria
No próximo dia 10 de outubro, completam-se 102 anos do assassinato de Delmiro Augusto da Cruz Gouveia, em 1917. Há pouco mais de um século, portanto, o autor do mais ousado projeto modernizador no Nordeste teve sua vida interrompida por alguns balaços saídos de mãos criminosas. Lembrado como um empreendedor atrevido, visionário e excêntrico, Gouveia protagonizou a saga empresarial de construção da primeira hidrelétrica no semiárido brasileiro, aproveitando as águas do São Francisco. A hidrelétrica gerou energia que movimentou os teares da primeira fábrica de linhas de coser do País, produzidas por operários que receberam benefícios inimagináveis para a época, como pagamento semanal, educação para os filhos, assistência médica e moradia. Após 102 anos do episódio, a Imprensa Oficial Graciliano Ramos lançou no dia 28 de agosto, no Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas (IHGAL), o livro “Revisão Criminal do Processo Delmiro Gouveia”, uma obra organizada pelo advogado Antônio Aleixo Paes de Albuquerque e o pesquisador Moacir Medeiros de Sant’Ana. O livro acompanha a revisão da condenação de Róseo Moraes do Nascimento, e José Ignacio Pia, conhecido como Jacaré, e Antônio Félix do Nascimento, os principais acusados do assassinato de Delmiro. Moacir Sant’Ana e Aleixo Paes de Albuquerque foram advogados de defesa de Róseo Moraes, que afirmou ter confessado o crime, à época, após passar por várias sessões de torturas. O processo de revisão inocenta do assassinato de repercussão nacional além do próprio Róseo Morais do Nascimento e José Ignácio Pia,  Antônio Félix do Nascimento (este assassinado antes mesmo do fim do processo). Os verdadeiros culpados confessaram posteriormente, em épocas distintas, suas participações. Um dos fatos marcantes do lançamento do livro foi, sem dúvidas, o relato emocionante, entrecortado por silêncio e lágrimas, do desembargador aposentado e jornalista Antônio Sapucaia (in memoriam), falecido na quinta-feira, 3 de outubro, vítima de um infarto. Sapucaia foi testemunha dos momentos que resultaram na Revisão Criminal do Processo Delmiro Gouveia e concedeu sua última entrevista para esta reportagem ao Tribuna Independente. Tal processo virou livro graças aos esforços de Aleixo (in memoriam) e do historiador Moacir Sant’Ana, mas com preciosa colaboração de Sapucaia, ainda como repórter do então matutino Gazeta de Alagoas por volta de 1968, quando entrevistou um dos condenados pelo assassinato de Delmiro, Róseo Morais do Nascimento. Este personagem foi fria e cruelmente torturado pelo aparelho do Estado à época para confessar participação no crime e depois corroborado pela própria Justiça alagoana. Róseo, na ocasião, fez revelações bombásticas que repercutiram na imprensa nacional. Esta reportagem é, também, uma pequena homenagem ao senso de Justiça que sempre acompanhou o jornalista e jurista Antônio Sapucaia. [caption id="attachment_331469" align="aligncenter" width="300"] Róseo Morais: seu caso entra para história como um dos maiores erros do Judiciário (Reprodução: Sandro Lima)[/caption] A sensibilidade de um repórter e uma Justiça tardia Há dois anos, no centenário de morte de Delmiro Gouveia, o jornal Tribuna Independente, que, à época, produzira um caderno especial de oito páginas dedicadas ao tema, entrevistou um dos grandes personagens desta saga que envolve Delmiro Augusto da Cruz Gouveia: o desembargador aposentado e jornalista Antônio Sapucaia. A Tribuna encontrou Sapucaia debruçado à velha máquina de escrever – objeto já em extinção em tempos dos atuais aparelhos de última geração – mas que ainda era sua companheira inseparável. Acomodado numa cadeira em sua bela casa, num aprazível loteamento de classe média alta, no bairro da Gruta de Lourdes, em Maceió, Sapucaia recebeu a reportagem para contar o que testemunhou sobre o rumoroso caso de condenação pelo assassinato de Delmiro Gouveia, em 10 de outubro de 1917, principalmente na reviravolta do caso, que apontou três inocentes. Antes das perguntas sobre sua participação no processo criminal do desbravador do Sertão, Sapucaia gentilmente pedira ao repórter que desse uma lida no briefing preparado para o preâmbulo da entrevista. O material, claro, foi todo escrito com o auxílio da velha companheira máquina. Nada de computador ou coisa semelhante dos tempos modernos. Processo da morte de Delmiro é um dos maiores erros do Judiciário brasileiro O livro com a colaboração de Sapucaia traz documentos, fotos, publicações e relatos, além de abordar os verdadeiros autores do crime  e joga luz às autoridades e sociedade como um dos maiores erros cometidos pelo Judiciário brasileiro. Na sua fala no lançamento da obra sobre o episódio que completará no próximo dia 10 de outubro 102 anos, disse Sapucaia: “o momento comporta um desabafo: se a Justiça não tivesse sido omissa e pusilânime, fechando os olhos à realidade cruel e brutal espargida nos autos, certamente o maior erro do Judiciário de Alagoas não teria existido e dois réus não teriam sido transformados em trapos humanos, molambos de gente, frangalhos de seres vivos. Este livro poderá servir de advertência às autoridades policiais e judiciárias, pois, apesar da cerrada vigilância em torno dos direitos humanos, por este Brasil afora a tormenta física e moral ainda frequenta delegacias de polícia e cartórios, por razões as mais diversas e difíceis de serem catalogadas”. Sapucaia ainda completou sua emocionante fala citando o icônico jornalista alagoano Costa Rêgo: “A Justiça não é bela quando apenas manuseia um Código e o aplica. É bela, chega a ser grandiosa, quando mergulha nas profundezas e na razão moral do fato que julga”. A frase acima de Rêgo poderia se juntar ou ser completada com uma frase célebre atribuída ao filósofo e escritor francês e um dos grandes representantes do Movimento Iluminista na França François Marie-Arouet, cujo pseudônimo o tornou conhecido no mundo inteiro: Voltaire. [caption id="attachment_331470" align="aligncenter" width="191"] Fotos históricas da reportagem de Antônio Sapucaia com repercussão nacional: imagem em destaque de Róseo e Jacaré, condenados injustamente (Reproduções: Sandro Lima)[/caption] Estado cruel e Justiça “cega” corroboram para erro gritante: espancamento pouco era bobagem O encarregado para investigar o caso pelo então governador de Alagoas, Batista Acyolli, foi o capitão da Polícia Militar Pedro Nolasco da Silva, que saiu de Maceió com 20 soldados. Ao chegar em Pedra – então nome da cidade de Delmiro Gouveia – o militar teria espancado inocentes para arrancar possíveis culpados pelo assassinato. Sapucaia lembra que foi durante a entrevista que Róseo resolveu lutar para provar sua inocência. “Foi ali que, pela primeira vez depois de muitos anos, Róseo falou em aceitar uma revisão criminal após uma sugestão nossa”, relembra o ex-desembargador. Passado mais ou menos um mês do marcante encontro entre o repórter e o condenado, Sapucaia conta que Róseo outorgou procuração para ele e para o advogado Antônio Aleixo de Albuquerque para ajuizar a ação. “A bem da verdade, devo dizer que o Aleixo já era um conceituado criminalista, enquanto eu era um ‘pelanco’ de advogado, ainda nos cueiros da atividade”, brincou Sapucaia. Mas em face de ter sido nomeado para o cargo de juiz de Direito em 1971, tornou-se impossível a Sapucaia legalmente continuar na causa. Róseo então deu plenos poderes ao advogado e bacharel em Direito Moacir Medeiros de Sant’Ana, que levou a bom termo a luta para provar a inocência dos condenados. No dia 24 de maio de 1983, por maioria de votos, e através do Acórdão número 5.50/83, o Tribunal de Justiça de Alagoas deu ganho de causa aos então réus no processo de assassinato do coronel Delmiro Augusto da Cruz Gouveia, em que Róseo Moraes do Nascimento e José Ignácio Pia foram condenados. Mesmo o caso tendo sido reavaliado pelo Tribunal de Justiça em maio de 1983, seu acórdão só foi publicado no Diário Oficial em 1º de março de 1984. O relator do processo foi o desembargador José Agnaldo de Souza Araújo. “[…] por maioria de votos, em julgar procedente a revisão para absolver ‘post mortem’ os réus – Róseo de Moraes Nascimento e José Ignácio Pia, conhecido por ‘Jacaré’, da imputação feita aos mesmos”, afirmou o relator em seu voto. …O chalé do coronel Delmiro Gouveia era situado quase em frente à estação ferroviária da Pedra. À noite sempre ficava bem iluminado entre um roseiral que desprendia um perfume bastante agradável. Protegendo a casa, levantava-se uma cerca de arame farpado. Os fios eram separados um do outro mais ou menos dez centímetros para impedir a passagem dos cachorros. Os do coronel, inexplicavelmente, não estavam soltos naquela noite (…) A rajada saiu de uma vez num estrondo medonho, na escuridão da noite. O apito da fábrica varava o espaço. As três balas atingiram o alvo e os cabras saíram agachados numa fuga apressada e estonteante. Tinham feito o serviço (…) Trecho do livro O Ninho da Águia, Saga de Delmiro Gouveia, de Adalberon Cavalcante Lins. Na revisão do julgamento dos condenados, o Ministério Público deu parecer pela manutenção da primeira decisão judicial condenatória. As provas colhidas para os autos eram robustas em face dos documentos colhidos. Sapucaia disse à Tribuna ainda que, por causa da prescrição, os familiares dos condenados não conseguiram êxito no processo para responsabilizar o Estado por ficarem tanto tempo presos desde 1917, época do assassinato de Delmiro. Dessa forma, a Justiça reconhecia, somente após a revisão 66 anos depois do episódio, não haver mais dúvidas de que os autores intelectuais do crime foram o coronel José Gomes de Sá e José Rodrigues, de Piranhas, enquanto os autores materiais foram Herculano Soares Vilela, que residia na Serra dos Cavalos, em Água Branca, auxiliado por seu cunhado Luiz dos Angicos, e Manoel Vaqueiro, esses três reconhecidos pela Justiça como os verdadeiros pistoleiros. Há dois anos, a reportagem conseguiu encontrar uma das netas de Róseo de Moraes. Residente no bairro de Ponta Grossa, em Maceió, ela não quis conceder entrevista.  “Tenho pavor desse assunto”, resumiu. Este ano, tentamos novamente contato com familiares por conta do lançamento do livro, mas a resposta foi a mesma. Nada a declarar sobre este assunto. [caption id="attachment_331471" align="aligncenter" width="300"] Livro “Revisão Criminal do Processo Delmiro Gouveia”, uma obra organizada pelo advogado Antônio Aleixo e o pesquisador Moacir Sant’Ana, com colaboração de Antônio Sapucaia (Foto: Thiago Sampaio / Agência Alagoas)[/caption] Furo sensacional, um inocente grita por liberdade Sapucaia, na condição de repórter e estudante de Direito em 1968, quando trabalhava no matutino Gazeta de Alagoas, foi o primeiro jornalista (e talvez o único) a entrevistar um dos condenados pelo assassinato de Delmiro Gouveia, Róseo Moraes do Nascimento. Outro acusado, e também inocente no caso, era José Ignácio Pia. Um terceiro, chamado Antônio Félix do Nascimento, a quem a polícia também usou como bode expiatório, foi morto ainda antes do primeiro julgamento. “Tive a oportunidade de entrevistar o Róseo na cadeia. A matéria teve repercussão nacional, publicada com igual espaço em veículos como o Jornal do Commercio, de Pernambuco, e em quatro páginas da revista O Cruzeiro, então semanário de maior circulação nacional”, lembrou Sapucaia à época. Na pergunta sobre o que escutou e viu in loco do acusado de assassinar o personagem do polêmico caso, uma convicção: “logo nos primeiros contatos com o entrevistado, nasceu-me a certeza de que ele era realmente inocente”, crava o desembargador aposentado. Detalhe: Róseo Moraes havia até então reiterado várias vezes de que teria participado da trama que abreviou a vida de Delmiro. “Senti a alma daquele homem que havia assumido a culpa porque ele me fez ver que havia sofrido inomináveis torturas para confessar o crime, ato esse comprovado depois, inclusive nos autos. Para mim, ficou claro que as autoridades queriam a qualquer custo os culpados, ainda que fossem inocentes, porque ignoraram completamente seus apelos e dos outros acusados, provados também depois que eram igualmente inocentes”, ratificou Sapucaia. “Erro do aparelho policial do Estado estava naturalmente ligado à imensa repercussão da morte de Delmiro para o País”, completou o desembargador na ocasião.