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Câncer bucal: Metade dos pacientes morre em menos de dois anos do diagnóstico em Alagoas

Situação crítica acende alerta e profissionais se engajam em projeto para mudar realidade

Por Texto: Ana Paula Omena com Tribuna Hoje 14/07/2019 11h14
Câncer bucal: Metade dos pacientes morre em menos de dois anos do diagnóstico em Alagoas
Reprodução - Foto: Assessoria
Em Alagoas mais de 85% dos casos de câncer de boca são diagnosticados em estágios tardios da doença, isso porque, além da falta de informação de pacientes quando o problema é identificado, eles passam até oito meses para iniciar o tratamento no estado. Para mudar essa realidade, profissionais da saúde, professores e alunos de uma universidade se engajaram num projeto para aumentar as chances de cura da enfermidade. A coordenadora do Mestrado Profissional de Pesquisa em Saúde do Centro Universitário (Cesmac), professora doutora Sonia Ferreira, diz que a situação é absurda nos dias de hoje, ela afirma que a metade das pessoas diagnosticadas com câncer de boca morre em menos de dois anos após o diagnóstico em Alagoas. “Na boca... Basta abri-la, o dentista ou qualquer pessoa identifica, não precisa ter grandes coisas. Fica difícil imaginar que uma lesão tão fácil de notar leve a óbito”, frisou. Sonia Ferreira explicou que estudos comprovam que a demora no diagnóstico se deve a três fatores: dificuldade do paciente em procurar atendimento; acesso para seguir o tratamento; e o próprio Sistema Único de Saúde (SUS). Ela diz também que a maioria dos pacientes, em 85% dos casos não sabe nem ler e nem escrever. “O trabalho de identificação é importantíssimo, quando ficamos sabendo, que as pessoas diagnosticadas, eram analfabetas, tratamos de providenciar cartilhas ilustrativas (desenhos) para orientar mais facilmente”, destacou. [caption id="attachment_303637" align="aligncenter" width="640"] "Muitos pacientes nunca foram ao dentista", frisa professora Sonia Ferreira (Foto: Sandro Lima)[/caption] Pesquisas chamam a atenção quando se trata da doença epidemiológica. De acordo com a professora doutora, grande parte dos pacientes é idoso, com até 80 anos de idade. E que muitas vezes, segundo ela, nunca tinham ido ao dentista na vida, além de fumarem desde os 10 anos de idade e chegarem com a lesão em estágio muito avançado da doença. Outro aspecto dito pela especialista diz respeito também à dependência do álcool, doença paralela ao câncer bucal. Conforme Sonia Ferreira, a hipótese é de que o álcool faz uma analgesia na ferida, tendo em vista, que, o câncer pode começar com uma simples ferida na boca, que pode ser confundida, por exemplo, com uma afta, um trauma de prótese, entre outros. [caption id="attachment_303655" align="alignright" width="404"] Foto: Cortesia[/caption] “Quando o álcool já não dá mais conta da dor, e a doença está em estágio avançado, é que os pacientes na maioria homens e do interior do estado procuram atendimento”, afirmou. Uma mulher de 52 anos, que aceitou conversar com a reportagem, porém em troca do anonimato, convive com um câncer de boca há 2 anos. Ela contou que a ferida veio mascarada de uma afta na língua, que passou pomada e tomou medicamentos por cerca de três meses e nada de sarar. A mulher que estava acompanhada da filha mais nova numa consulta de retorno após as sessões de radioterapia no Centro de Alta Complexidade em Oncologia (Cacon) do Hospital Universitário Professor Alberto Antunes da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), disse que procurou um dentista e o profissional pediu que fosse feita uma biopsia. “A biopsia foi feita no Centro Odontológico da Ufal e dois meses após a descoberta foram feitos novos exames, e quatro meses depois começou a radioterapia. Após isso foi marcada a cirurgia da língua, que só aconteceu no ano passado, depois fiz mais outra no pescoço. Se não fosse tão demorado a minha chance de cura aumentaria”, disse a paciente que mudou sua rotina após a doença. “Parei de fazer radioterapia, mas venho sentindo muitas dores; fiz uns exames e estou trazendo de volta para saber o que houve talvez o câncer tenha progredido”, lamentou. A mulher deixou de trabalhar e busca pela fé em Deus superar o momento vivido. Outra mulher que não quis se identificar, alegando que muitos não sabem que ela tem câncer de boca, disse que as consequências das cirurgias foram muitas cicatrizes e deformações no rosto e pescoço. “Nós somos guerreiros. Faz três anos que fiz a cirurgia. Tenho muita dificuldade de falar, me alimento só pela sonda e nem água eu engulo”, revelou. HPV é uma das principais causas do câncer de orofaringe   A professora Sonia Ferreira também chamou a atenção para o HPV genital, uma das principais causas do câncer de orofaringe - pequeno espaço da cavidade bucal compreendida entre a raiz da língua, o palato mole e a epiglote. Conforme ela, uma parcela da população é de jovens, que não estão dentro do fator de risco, mas que estão sendo acometidos pela doença no Brasil. https://www.youtube.com/watch?v=uUuOQxnylBU&t=3s Em Alagoas, Sonia revelou que há pacientes mulheres na faixa etária de 30 anos, que nunca beberam e fumaram, mas estão com câncer de orofaringe. “Como em Maceió não temos como confirmar, a gente suspeita que tenha sido infecção por HPV. Sendo também mais difícil de diagnosticar por está mais escondido. Quando a gente descobre está na metástase. Porque muitas vezes o paciente tem a lesão, porém não sente dificuldade de engolir, falar, nada...”, observou. “Uma parcela de pessoas está sendo acometida pela infecção do HPV – papiloma vírus pela orofaringe que também é o maior causador do câncer de útero, e que para isso, já temos vacina aplicada nas adolescentes”, lembrou. REALIDADE TERRÍVEL Sonia Ferreira reforçou que a realidade da doença em Alagoas é preocupante e terrível, já que além da metade dos pacientes morrerem em menos de dois anos do diagnóstico, 85% são diagnosticados em estágio tardio, e muitos quando não veem a óbito, desenvolvem um segundo tumor em, no máximo, cinco anos. “Então, o prognóstico é muito ruim. Por isso, temos que intensificar ações e qualificar os profissionais”, alertou. Ela explicou que quando o paciente chega aos estágios 1 e 2 ainda passa por cirurgia, porém no mais avançado é necessário fazer quimioterapia, radioterapia e tentar a cirurgia, entretanto salientou que terá morbidade e mortalidade maiores. LINHA DE PESQUISA Em função deste índice, o Centro Universitário de Maceió (Cesmac) trabalha com uma linha de pesquisa com câncer de boca, que vem se desenvolvendo por meio de financiamentos levando a cartilha ilustrativa citada pela professora para quase todos os municípios do estado de Alagoas. Ela explicou que num segundo momento, foi feito também um DVD informando aos dentistas como era a lesão, como se correlacionava com o histopatológico, e agora, a professora Sonia mencionou que o projeto ficou bem maior. “Eu e Vanessa Santos que trabalhamos nessa área, estamos convidando os dentistas para a dissertação de mestrado da médica oncologista Andrea Tatiane, e nessa parceria promovendo cursos de qualificação para os profissionais dentistas de todo o estado, já vamos para o terceiro módulo, em junho teremos dois momentos, sendo um em Maceió, que abrange a macrorregião 1, e outro em Arapiraca com a macrorregião 2”. “O trabalho é voltado para o diagnóstico precoce mostrando como identificar as lesões de início, o tratamento e manejo do paciente oncológico”, detalhou. [caption id="attachment_303638" align="aligncenter" width="640"] Equipe leva qualificação para os dentistas em Alagoas (Foto: Sandro Lima) [/caption] De acordo com a professora, o trabalho é de ‘formiguinha’ na intenção de que todos os dentistas da rede SUS (Sistema Único de Saúde), Atenção Básica e Atendimento Regular sejam treinados. Em média são 700 profissionais a cada evento. “O estudo tem outra perna, ou seja, a gente quer aumentar o diagnóstico precoce, porque nós temos uma dificuldade grande de acesso, embora tenha a lei que diz que após o diagnóstico deve-se iniciar o tratamento, a gente sabe que não funciona em Alagoas”, lamentou Sonia Ferreira. “Atendendo o SUS de forma geral fazendo cirurgias de cabeça e pescoço não chegamos nem a quatro profissionais. Então, o que acontece, a gente faz o diagnóstico precoce, porém se leva oito meses para achar o tratamento”, revelou. [caption id="attachment_303657" align="alignleft" width="278"] Foto: Cortesia[/caption] “Imagine, em oito meses do diagnosticado, o paciente de estágio 1 já passou para 2, ou de 2 para 4, ou de 1 para 3. Aqui no estado temos essa dificuldade, por isso que estamos fazendo projetos há mais de 10 anos, trabalhando para melhorar o diagnóstico e assistência ao paciente enfermo. Já fizemos muita coisa, fórum interdisciplinar, visitas e rastreamento de câncer em todo o estado, e agora estamos trabalhando com a informação tanto com pacientes quanto com profissionais”, mencionou. Um dos eventos grandiosos que Sonia Ferreira colocou é o 45º Congresso Brasileiro de Estomatologia e Patologia Oral (http://www.estomatologia.com.br/congresso-sobep2019?l=programacao), que acontece na capital alagoana, de 17 a 19 de julho, realizado pela Sociedade Brasileira de Estomatologia – SOBEP, cujo encontro a tem como presidente. “Estamos preparando programação científica rica com mais de 50 profissionais de destaque, nacionais e sete deles internacionais”, avisou. Conforme a professora, o congresso ocorre pela primeira vez em Maceió, como reflexo de todos os estudos e pesquisas que o Cesmac tem desenvolvido, trazendo visibilidade em suas produções. Ela também trabalha no PAM Salgadinho no Serviço de Estamatologia do Cesmac, que proporciona o acontecimento. “A parceria com a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) se dá pelo meu trabalho, mas também por todo o apoio das coordenações de saúde bucal do município e estado, bem como a Coordenação de Doenças Crônicas do município. Trabalho no Centro de Apoio à Pacientes com HIV-Aids e tenho um espaço aberto dentro desse programa para fazer esse serviço, então o munícipio proporciona condições para que aconteça. O Cesmac é primordial, faço todas as radiografias dos pacientes e exames histopatológico, dando apoio a esses eventos”, mencionou. “Infelizmente nós não temos dentro de Maceió um espaço para que possibilite tudo que estamos querendo fazer”, enfatizou em tom de tristeza. “E no Cesmac existe um auditório e sala invertida que juntos comportam mais de 300 pessoas, então estamos procurando e espero mudar a realidade, é um sofrimento grande, contando você não acredita. Talvez precisa visitar mais vezes, e é essa provocação que estamos fazendo aos dentistas por isso estamos batendo tanto na tecla da qualificação”, explicou a professora. Diagnóstico precoce é o caminho       

Segundo a coordenadora de Saúde Bucal do Estado de Alagoas, Lourdes Mota, o diagnóstico precoce é o caminho para que se possa atuar de maneira efetiva no controle da doença. “Essa é a razão do curso, da pesquisa e da qualificação, proporcionar exatamente um atendimento cada vez mais qualificado para que o paciente seja diagnosticado precocemente”, afirmou.

Para Andreia Barboza, gerente de Atenção às Doenças Crônicas da Secretaria Municipal de Saúde, Maceió atua com cinco doenças preconizadas pelo Ministério da Saúde para que todos os governos possam dar uma maior atenção nesses casos, causando maior adoecimento na população, dentre elas o Câncer. Andreia destaca ainda a importante parceria estabelecida com a academia, como é o caso do Cesmac. “Quando falamos em câncer, qualificação profissional, entender o caminho do paciente, entre outras questões, o Cesmac é um forte aliado nesse processo”.

“É angustiante porque a gente faz o diagnóstico e passam meses para iniciar o tratamento. Temos uma lista de pacientes que ligamos para saber se foi para o médico, se foi tratar. Tenho uma auxiliar no PAM Salgadinho que é um anjo, ela mesma marca pelo Cora (Complexo Regulador de Maceió), encaminha para o paciente vir. Mas são pacientes de origem pobre, do interior, que não sabem se quer pegar um carro. São poucas as cidades que dispõe de alguém fazendo esse tipo de trabalho”, comentou.

[caption id="attachment_303651" align="aligncenter" width="471"] Gerência de Saúde Bucal da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) promove mutirão para detectar casos de câncer bucal (Foto: Ascom SMS)[/caption] Ela ressalta que apenas 10% dos alagoanos tenham plano de saúde, uma mudança de realidade que deveria acontecer rapidamente. “A triagem oncológica melhorou muito pelo SUS, o paciente até faz, mas quando volta se for cirúrgico esse enfermo terá muita dificuldade de acesso. Atualmente existe uma cirurgiã de cabeça e pescoço que faz cirurgias na boca, tireoide, orofaringe, tudo que tiver nessa região está sob responsabilidade dela, ou seja, não somente câncer de boca”. “Então, tem uma lista de espera de no mínimo seis meses, de pendendo do estágio aquele paciente não aguenta esperar. Dai vem outro problema que é um leito com UTI, que dê suporte e nós não temos. Muitos hospitais não atendem pelo SUS, fora que uma cirurgia dessas se passa o dia todo para ganhar R$ 300, quem quer?”, indagou angustiada durante entrevista. Para Sonia Ferreira a única saída é treinar os dentistas para visitar as residências e diagnosticar a doença o quanto antes. “É neste sentido que iremos mudar esse índice tão crítico. Tenho profissional que hoje é do A.C. Camargo, a intenção é treinar para espalhar as pessoas e resolver a situação, mas precisa de uma ação pública eficaz, o paciente tem a dificuldade de entrar para iniciar o tratamento, mas também tem a dificuldade de sair. Quando chega no último cuidado, que são aqueles paliativos, ele também não tem, e morre em casa na maioria das vezes. O paciente de câncer de cabeça e pescoço é muito desassistido, agora quando ele vai para a radioterapia ou quimioterapia, por exemplo, tem chance”, salientou. [caption id="attachment_303645" align="aligncenter" width="468"] Foto: Cortesia[/caption] A professora diz ainda que tem paciente vivo há 10 anos que passou somente pela radioterapia. “O caminho é a precisão da orientação do tratamento correto para aquele paciente em particular e mais profissional. Estávamos até bem, mas quando o dinheiro não chega vão embora, não ficam em Alagoas”, frisou a dificuldade. “Não é igual ao câncer de útero, mas as pessoas com câncer de boca estão sub diagnosticadas, maltratadas e assim aumenta o problema, mas estamos na luta para ensinar. E é uma coisa nossa, voluntária, não é o governo”, concluiu. Prevenção pode diminuir casos da doença em até 25% até 2025    A Organização Mundial da Saúde (OMS) reforça que a prevenção é fundamental para diminuir os casos da doença em até 25% até 2025. O câncer de boca acometeu cerca de 14,7 mil pessoas no Brasil só no ano de 2018, sendo 11,2 mil em homens e 3,5 mil em mulheres. Os dados são do Instituto Nacional do Câncer (Inca). Ainda de acordo com o Instituto mais de 5 mil mortes foram registradas em 2018 por câncer de boca. Os números expressivos resultam em pacientes que muitas vezes ignoram os fatores de risco, como o autoexame. Um estudo atual, feito com orientação da bióloga e geneticista do A.C. Camargo e da  Universidade Estadual Paulista (Unesp), Sílvia Regina Rogatto, apontou que em casos de câncer de amídala a incidência do HPV cresceu de 25%, registrados há 20 anos, para 80%. O levantamento mostrou ainda que entre 25% e 50% das mulheres e 50% dos homens  estejam infectados pelo HPV em todo mundo. Também de acordo com pesquisas feitas entre homens norte-americanos, mexicanos e brasileiros, ao menos 2% da população adulta tem o vírus HPV e não apresenta nenhum sintoma. Já em outra pesquisa, comandada por Kowalski, os médicos detectaram que 32% dos casos de câncer de boca em jovens adultos eram em portadores do vírus. Em pacientes acima de 50 anos, a presença do vírus foi detectada em apenas 8%.