Ciência, cultura e economia: sururu transforma a vida de marisqueiras

Patrimônio Imaterial de Alagoas é responsável por garantir o sustento de várias famílias; conchas são limpas, processadas, comercializadas e transformadas em produtos de luxo para a construção civil

Por Lucas França e Valdete Calheiros - Repórteres / Bruno Martins: Revisão / Sandro Lima: Foto | Redação

É da favela? Não, nega Juju / Nasceu num rancho da terra do sururu / Quadris roliços, o cabelo atrapalhado / Quem vê diz que traz feitiço no olhar apimentado / Cavando a vida no Canal do Mundaú / Pesca caboclo, maçunim e sururu / Em Bebedouro, no Farol, na Ponta Grossa / Com o sururu da nega a folia é nossa / Não há petróleo, não há porto, não há nada / O bom problema é o sururu lá na Levada”.

As rimas acima são o ponto alto do sururu na cultura alagoana. A letra é de 1934, quando Aristóbulo Cardoso e Pedro Nunes lançaram o frevo “Sururu da Nega”, um sucesso estrondoso que permaneceu como hino do carnaval alagoano por décadas. Cantado em verso e prosa, o sururu é para muitas famílias em Alagoas o pão à mesa, o alimento que sacia. No entanto, viver da cata do molusco na Laguna Mundaú, em Maceió, onde o sururu se mistura à paisagem alagoana não está fácil.

Catadores chegam a mergulhar até cinco metros de profundidade e trabalham quase 15 horas por dia entre a cata e o cozimento do alimento. Cada quilo é comercializado de 35 a 40 reais. Dependendo da oferta e da demanda, pode chegar a R$ 70.

O período de inverno não favorece muito. Naturalmente, o sururu fica mais escasso. As chuvas diminuem a salinidade da água. Com os sedimentos vindos dos rios, o sururu fica sem oxigênio, sem alimento e morre.

Trabalho com o sururu é realizado por mulheres em sua grande maioria, 70% (Foto: Sandro Lima)

Setenta por cento das pessoas que trabalham com o alimento são mulheres. A presidente da Federação de Pescadores de Alagoas (Fepeal), Maria dos Santos, afirmou que a entidade trabalha com uma estimativa de aproximadamente sete mil mulheres que sobrevivem como marisqueiras e pescadoras no complexo lagunar.

“Não temos o número exato de quantas pessoas vivem exclusivamente do sururu porque estamos fazendo um recadastramento no banco de dados do governo federal junto ao Ministério da Pesca, estamos consolidando esse número”, afirma.

O pescado do sururu representa 100% da renda da comunidade lagunar. A maioria não tem escolaridade ou experiência em qualquer outra área de trabalho, o que dificulta a inserção em outros empregos.

Presidente da Fepeal, Maria dos Santos (Foto: Arquivo pessoal)

O sururu é um dos ícones da identidade alagoana, sendo referência na culinária do Estado. Em 2014, o molusco foi aprovado por unanimidade pelo Conselho Estadual da Cultura como Patrimônio Imaterial de Alagoas. A Laguna Mundaú banha Maceió, Coqueiro Seco e Santa Luzia do Norte.

Historicamente, a pesca do sururu é fonte de renda para muitas famílias e pescadores, principalmente na Laguna Mundaú. Há tempos, o alimento ultrapassou os limites da mesa e da cozinha e chegou ao cenário cultural e musical, batizando mostras de arte e de música em todo o Estado.

O processo do sururu, desde o momento de pesca até a venda, é composto por muitas etapas. A primeira delas é a lavagem, depois a separação e o cozimento para a abertura das conchas. Depois de cozidos, o sururu e as conchas vão para a peneira para serem separados e preparados para a venda.

Para o sururu crescer e se desenvolver, o teor de salinidade das águas não pode ser muito doce, mas também não deve ser muito salgado.

O professor do Instituto de Química e Biotecnologia (IQB) da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Josué Carinhanha Caldas Santos, explicou que o sumiço do sururu não é algo pontual, nem atual. “Em um histórico recente, isso já vem sendo reportado pelos pescadores há alguns anos”.

Segundo o pesquisador, as prováveis causas estão associadas ao processo de assoreamento da laguna, algo que acontece há muitos anos. “Para termos uma ideia, alguns locais na laguna tinham profundidade aproximada de oito, dez metros. Atualmente, essas áreas têm profundidade da ordem de dois metros. Associado a isso, temos um processo constante de contaminação ambiental, sobretudo esgoto urbano, alguns pontos são notoriamente vistos com facilidade naquela área, isso evidentemente vai levar a variações em parâmetros químicos e físico-químicos e biológicos da qualidade da água. E também relacionada à redução dos nutrientes, principalmente fitoplâncton, que são uma fonte de alimento do sururu”, detalhou o professor, que possui graduação em Licenciatura em Química pela Universidade do Estado da Bahia, mestrado e doutorado em Química Analítica pela Universidade Federal da Bahia com período na Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto, em Portugal.

Pesquisador Josué Carinhanha (Foto: Arquivo pessoal)

Aliado a isso, completou Josué Carinhanha, nos últimos anos foi reportado o aparecimento de outra espécie, que foi denominada como espécie invasora e que comumente é reportada pelos pescadores como sururu branco.

“Ele não tem as mesmas propriedades organoléticas em relação a sabor, o que infelizmente impede o consumo, e também a casca dele é mais frágil, o que até atrapalha, caso o sabor fosse adequado, a comercialização”.

De acordo com Josué Carinhanha, o mercado interno é ávido por essa iguaria. “O sururu é um Patrimônio Imaterial do Estado de Alagoas e por conseguinte ele está na própria cultura do alagoano e do turista que visita o Estado. Dessa forma, existe uma demanda local, sobretudo vinculada ao turismo, em restaurantes e em outros centros gastronômicos”, considerou.

Na avaliação de Josué Carinhanha, a solução gira em torno de pensar na laguna como um sistema dinâmico. “As ações não podem ser pontuais. Elas têm que ser locais, políticas, organizadas e ordenadas. Então, precisa existir um plano continuado para restaurar e reestruturar toda a capacidade da laguna em relação a seu potencial de produção. Tem que se pensar em redução ou eliminação de lançamento de esgoto naquele sistema. Precisa de um programa de reestruturação em relação ao desassoreamento da laguna, um programa continuado de monitoramento ambiental para avaliar como esses parâmetros estão relacionados e, evidentemente, ver esses estudos relacionados. Essa espécie invasora, para que ela não torne inviável o crescimento do sururu nativo. Então é um conjunto de tarefas e de ações que precisam ser colocadas em prática. Os órgãos públicos, evidentemente, que têm que ter um papel fundamental nesse processo. Tem que ser um programa vinculado de forma sustentável e continuada”, salientou.

Josué Carinhanha atuou na divisão de Química Analítica da Sociedade Brasileira de Química (SBQ) como tesoureiro, vice-diretor e diretor e coordena o Laboratório de Instrumentação e Desenvolvimento em Química Analítica (LINQA).

'O que antes era descartado na maioria das vezes de forma irregular, hoje vira dinheiro para a gente', essa afirmação é da marisqueira Joseane dos Santos, que atua no ofício há mais de 30 anos.

(Foto: Sandro Lima)

IABS e criação de novas ideias para as conchas do sururu

A diretora regional Nordeste do IABS (Instituto Brasileiro de Desenvolvimento e Sustentabilidade), Roberta Roxilene, enxergou o valor social do sururu. Ela é coordenadora de sustentabilidade do Portobello grupo e é responsável por coordenar projetos.

O IABS é uma organização do terceiro setor. Uma organização de sociedade civil de interesse público certificada pelo Ministério da Justiça, como OCP – Organização de Certificação de Produtos. Uma OCP é uma empresa privada que atua no mercado, oferecendo serviços de avaliação e certificação de produtos.

A OCP é responsável por verificar se um produto atende aos critérios de qualidade ou desempenho estabelecidos por normas técnicas ou regulamentações.

“O IABS existe há 21 anos. E desde o início, trabalha com questões de projetos relacionados à sustentabilidade. Mais recentemente, revalidamos nossa missão e nosso propósito. Nosso propósito é a sustentabilidade. Como sustentabilidade é um conceito muito amplo, optamos em com três frentes principais. A socioeconômica circular, a descarbonização da economia e a inserção socioprodutiva. A partir dessas três temáticas, atuamos com nossos projetos. O IABS trabalha em várias regiões do Brasil. Chegamos no Nordeste em 2012. Na época, implementávamos os projetos da AECID, Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento. A agência estatal da Espanha foi criada em novembro de 1988 como órgão de gestão da política espanhola de cooperação internacional para o desenvolvimento. A AECID investia recursos no Brasil e escolheu Alagoas por conta do baixo índice de desenvolvimento humano”, destacou Roberta.

O IABS executava os projetos da AECID em Alagoas e em outras áreas do Nordeste. Naquela época, por volta de 2012, o IABS conheceu a cadeia produtiva do sururu.

Nasceu, então, o Projeto Sururu: Conchas que Transformam. Um projeto de impacto com a comunidade do Vergel do Lago, em Maceió, especialmente com as mulheres marisqueiras da região.

Roberta Roxilene mostra uma das peças produzidas no IABS em parceria com a Portobello (Foto: Sandro Lima)

Com o legado de um trabalho iniciado em 2017, o IABS e a Portobello se uniram em 2020 junto com seus parceiros para gerar alternativas de renda, trazer mais qualidade de vida para a comunidade e diminuir os impactos ambientais das conchas de sururu descartadas nas ruas do bairro. Agora, essas conchas se transformam em produtos inovadores e de valor agregado, revertendo o lucro para a população local.

INTERNACIONAL

A Universidade Politécnica de Madri tinha um arranjo bem grande de instituições que eram financiadas e instituto conseguiu financiamento pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento, o BID.

O banco tem um braço que chama BID Lab, um laboratório de inovação. Quando o IABS foi apoiado pelo BID Lab, foi contratado um laboratório da Universidade de São Paulo (USP) para fazer um estudo sobre a composição da concha. Eles identificaram que a concha é rica em carbonato de cálcio, praticamente 99% da sua composição.

Desta forma, ela pode ser reintroduzida em inúmeras cadeias, desde a agricultura para a adubação orgânica, ração animal, construção civil, celular. São possibilidades gigantescas.

“Dentro da cadeia produtiva do sururu, a maior rentabilidade não está com as marisqueiras. Pelo contrário, elas ficam com o menor valor dentro da cadeia produtiva. Então, pensando em quebrar essa barreira de gênero na cadeia produtiva e beneficiar, aumentar a renda das mulheres, que muitas vezes são mães solo, são chefes de família, optamos por trabalhar com elas, justamente para que elas pudessem se beneficiar e ter um aumento de renda que elas não conseguem no trabalho tradicional da cadeia policial”, pontuou a diretora regional do IABS.

A jornalista espanhola Maria Herguedas veio ao Brasil quando ainda estagiava. Inicialmente morou em Brasília. Em uma das viagens pela IABS chegou no caminho do sururu alagoano. De volta à terra natal, sempre recorda em Madri as lições de vida que aprendeu com as marisqueiras. No IABS, ela atuou na diretoria técnica, na supervisão dos projetos.

“São histórias bem impactantes. São mulheres sofredoras, mas fortes. Trabalham em um emprego muito duro. Foi uma honra para mim ter conhecido, convivido e aprendido com elas”, disse Maria, que é formada também em relações internacionais. Com bagagem de estudo na Universidade Francisco de Vitoria, em Madri, a lagoa ajudou a enriquecer seu curriculum.

No áudio abaixo, Roberta Roxilene fala dos produtos feitos no entreposto em parceria com a Portobello.


PORTOBELLO

É uma das parceiras do projeto “Conchas que Transformam”. A empresa criou cobogós a partir das conchas do sururu, que passam a servir de matéria-prima para a construção civil. No vídeo abaixo, a coordenadora de sustentabilidade do Grupo Portobello, Scheila Orlandi, fala sobre a parceria.


Do lixo ao ouro: educação ambiental e grana extra para marisqueiras com as cascas do sururu

“O que antes era descartado na maioria das vezes de forma irregular, hoje vira dinheiro para a gente”, essa afirmação é da marisqueira Joseane dos Santos, que atua no ofício há mais de 30 anos.

De acordo com Joseane, o projeto “Conchas que Transformam” não mudou apenas sua vida financeira, mas também lhe ensinou a importância da preservação do meio ambiente e da limpeza do espaço público.

“Estou no projeto desde quando iniciou, por volta de cinco anos atrás, sou uma das primeiras e garanto a você que foi uma das melhores coisas que fiz na vida. Não apenas pelo dinheiro que recebo, mas por todo o aprendizado que nos é oferecido pelo instituto. Este projeto veio para melhorar a nossa comunidade, o bairro do Vergel como um todo. Imagine, o que antes iria para o lixo atualmente é a maior fonte de renda para muitas famílias. Além disso, a gente sabe a importância de deixar o espaço limpo, nosso solo e meio ambiente para que nosso ouro, que é o sururu, não suma”, falou a marisqueira.

SUPORTE

Joseane dos Santos relatou para a reportagem que a gratidão dela com o projeto é tão forte que ela não se imagina mais fora dele. “Sou uma das marisqueiras cadastradas e sou grata por isso. É com esse dinheiro que entra que consigo abastecer minha despensa. Essa semana mesmo [semana em que a reportagem esteve na comunidade, no dia 24 de setembro deste ano], eu estava sem nada em casa – teve um atraso em um pagamento com a moeda real e fui para o mercado com a moeda social [Sururotes – abaixo você conhece mais sobre a moeda] e comprei carne, feijão, arroz, material de limpeza etc. Ou seja, você consegue perceber a importância disso para todos nós aqui do bairro?”.

Marisqueira Joseane dos Santos (Foto: Sandro Lima)

ACEITAÇÃO DO COMÉRCIO LOCAL

De acordo com a marisqueira, mais de 60 estabelecimentos entre lanchonetes, mercadinhos, açaiteria, abatedor, cabelereiro, barbeiro, açougue e outros aceitam a moeda social paga pelo instituto como pelas cascas/conhas do sururu.

“O sururu é a minha principal fonte de renda e a casca que antes, como falei, era jogada fora virou uma renda extra que complementa o que a gente ganha com a venda do marisco. A gente limpa, tira o sururu para comercializar e agora a conchinha dele vira esses lindos produtos que você conheceu no IABS – é um luxo né? Agora, imagine que antes você não conseguia andar direito nessa via aqui do Vergel porque essas conchas eram jogadas na rua ou na beira da lagoa, era lixo, eram larvas e muitos animais como moscas, ratos e baratas. Aí quando começou o projeto ficou assim, limpo. Ficou melhor para nosso bolso, saúde, meio ambiente e lazer”, finalizou Joseane dos Santos.

Universidade e instituto: uma parceria que deu certo

Sururotes, este é o nome da moeda social que vem viabilizando uma prática importante de economia solidária e circular no bairro do Vergel do Lago, na parte baixa de Maceió.

Com a moeda social, a economia do bairro gira e possibilita melhorias para toda a população. De modo complementar à moeda oficial (o Real), o dinheiro social carrega características próprias da comunidade.

A moeda social é um dos projetos do Instituto Mandaver, que iniciou as atividades em 2018 em parceria com a Incubadora de Economia Circular da Ufal. E em 2019, foi colocada em circulação após uma pesquisa em torno da comunidade para buscar soluções viáveis para a localidade.

O professor Leandro Leal, responsável pela incubadora, viu que algo deveria ser feito com as cascas já que eram jogadas fora de forma irregular. Nesse processo surgiu a parceria com o IABS. Foi identificado que as cascas poderiam ser transformadas em um subproduto.

A ideia era que as marisqueiras e o bairro tivessem algum retorno. Foi daí que surgiu a moeda social. A incubadora fez a capacitação junto a outros parceiros, como o Sebrae. Capacitações foram criadas e a moeda começou a circular. A marisqueira vende o sururu e vende as cascas para o Entreposto do IABS, que paga por cada quilo com a moeda social. E as marisqueiras gastam esse dinheiro dentro do bairro nos estabelecimentos cadastrados fazendo a economia circular. Em seguida, esses comerciantes trocam a moeda social pelo dinheiro real no Banco Laguna. Em resumo é assim que funciona. O comerciante que recebe moeda social pode trocá-la por reais, quando desejar.

PUBLICAÇÃO

No dia 21 de abril de 2023, a reportagem do jornal Tribuna Independente publicou uma matéria especial intitulada: “Moeda social criada em parceria com universidade impulsiona economia na periferia”. Quem quiser conhecer mais sobre ela, está em anexo ao fim da reportagem o PDF do material.

A Ufal não colaborou apenas na criação da moeda social, ela também é grande incentivadora do IABS desde o início quando cedeu um prédio para a implantação do entreposto, onde são fabricados os cobogós para a indústria da construção civil.

Sururu ao longo da história de Alagoas

  • O sururu tão apreciado em caldinho tem fama de ser afrodisíaco e é para os alagoanos um símbolo de identidade ao longo de séculos. O antropólogo Edson José de Gouveia Bezerra, autor do ‘Manifesto Sururu: por uma antropofagia das coisas alagoanas’, lançado em 2004, já dizia que “o sururu é o alimento ancestral de Alagoas e nos leva a uma Alagoas profunda”.
  • O jornalista e historiador Edberto Ticianeli afirmou que o sururu, sempre presente na culinária das áreas lacustres, ganhou projeção nacional por qualidades que foram exaltadas pelo escritor alagoano Jorge de Lima em sua obra O Anjo, de 1934. Segundo ele, reconhecendo que o sururu existe “em quase todas as lagoas do Brasil”, Jorge de Lima identificou no sururu da Lagoa Mundaú “circunstâncias especiais explicadas pelos naturalistas, como mistura de água do mar com águas dos rios que deságuam na lagoa, e outras causas”. Com isso, eles “tornam-se como que degenerados, pequenos, gordinhos, gostosíssimos”.

“Este projeto transforma sonhos em realidade”, diz marisqueira

Assim como Joseane dos Santos, a marisqueira Fabiana Panta, 38 anos, que aprendeu o ofício com os pais desde os seis anos de idade, afirma que o “Conchas que Transformam” é uma escola de conhecimento.

“O dinheiro que recebemos pelas cascas do sururu é muito importante sim, ele nos ajuda a complementar nossa renda e possibilita não faltar nosso alimento, até o gás por exemplo já comprei usando a moeda que recebo a partir das vendas, mas acho válido acrescentar que o projeto também transforma nossa realidade para melhor no sentido de educação e conhecimento. Temos uma visão maior sobre o que é sustentabilidade, como manter nosso território limpo. Por exemplo, aqui era um lugar poluído, cheio de lixo e hoje a realidade vem melhorando a cada dia”, ressalta Fabiana.

Marisqueira Fabiana Panta (Foto: Sandro Lima)

A marisqueira lembrou ainda dos demais projetos sociais dentro do entreposto. “No momento, o sururu tá pouco aqui na lagoa, mas a gente busca em outras localidades, estes aqui são da lagoa de Roteiro, interior de Alagoas. A gente vai, pega a casca, limpa, seca e leva para o IABS e recebemos em troca. Isso já é importante, mas sim, participo de outras atividades e capacitações oferecidas a nós como a oficina do sabão caseiro, onde a gente aprende a fazer entre outras coisas, são conhecimentos que antes não tínhamos, por isso digo que quero continuar aqui para aprender a cada dia”.

Cooperativa agrega valor social ao sururu

As professoras Ana Maria Rita Milani e Rejane Soares de Oliveira, da Ufal, são autoras do trabalho “Cooperativismo no bairro Vergel do Lago na Lagoa Mundaú – Maceió, Alagoas e a criação da Cooperativa de Trabalho das Marisqueiras Mulheres Guerreiras (Copmaris)”.

O trabalho é resultado da pesquisa instrumentada através da Incubadora de Tecnologia Social da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (ITES-FEAC) da Ufal.

Segundo elas, como resultado observado, o experimento coletivo da Coopmaris evidencia o avesso de uma sociedade regida pelo capital. Assim, o cooperativismo apresenta-se como alternativa de milhares de trabalhadores que buscam alterar suas condições de vida sob a forma de organização coletiva do trabalho nas mais diversas regiões.

Produzido em condições precárias, a renda do sururu é baixa, com alto grau de dependência de atravessadores que ditam os preços e, consequentemente, geram baixo retorno econômico. A partir do trabalho de extensão da IITES-FEAC da Ufal podemos observar como se apresenta o processo produtivo da cadeia produtiva do sururu, que tem características extrativistas.

“A quantidade de sururu extraído, segundo os moradores da região, depende das condições climáticas, a época do ano - principalmente o período de chuvas no inverno - e a medida da salinidade da água, devido à mistura da água doce da lagoa com a água salgada do mar. Os trabalhadores enfrentam a rotina de trabalho no sururu sem o uso de equipamentos de proteção individual apropriados, encaram inadequações ergonômicas que são associadas ao processo por conta da má postura, sobrecarga física, movimentos repetitivos, lesões, inalação de fumaça e apneias contínuas, assim como a exposição e o contato com o ambiente insalubre. Assim, os trabalhadores podem desenvolver doenças ocupacionais que podem influenciar na qualidade de vida”, ensinou Ana Maria Rita Milani.

Professora Ana Maria Rita (Foto: Arquivo pessoal)

Rejane Soares de Oliveira pôde observar que o bairro do Vergel do Lago possui uma ampla vulnerabilidade social que reflete nas condições precárias de moradia, falta de esgoto domiciliário e na precariedade também nas condições de trabalho. “Em relação à produção do sururu existem vários problemas, falta de escoamento do sururu para o mercado, dependência da venda dos produtos para atravessadores, falta de organização do trabalho para aumento da produtividade, entre outros”.

Entretanto, afirmaram as professoras, as marisqueiras começam a sentir necessidade de melhor se organizarem em busca da valorização do seu trabalho, surgindo a iniciativa da formação de uma cooperativa, como forma de “unir forças para produzir mais”, nos dizeres delas.

No começo do ano de 2018, foram realizadas oficinas de capacitação para a gestão e produção de qualidade, o fortalecimento da identidade, acesso e conquista de direitos, resultando na fundação da Coopmaris, a qual já está formalizada.

Foram executadas oficinas de comercialização e de produção com “boas práticas” sanitárias, focando no fortalecimento do grupo, que diante das adversidades cotidianas precisou de apoio e acompanhamento para geração de renda.

Professora Rejane Oliveira (Foto: Arquivo pessoal)

A Coopmaris é formada por mulheres, com uma faixa etária em média de 40 anos, 80% recebem Bolsa Família e possuem uma renda média de R$ 300.

Experimentos do cooperativismo e da economia solidária buscam entender e aprender como os processos organizativos dos trabalhadores diretos tentam superar a exclusão social. O cooperativismo surge como uma via alternativa à lógica capitalista que tanto marginaliza as mulheres, sendo essa economia o espaço no qual se concretiza a representação, a produção e a comercialização. Na economia solidária as mulheres são “acolhidas” como parte do espaço social.

Na verdade, o experimento coletivo da Coopmaris evidencia o avesso de uma sociedade regida pelo capital. Assim, o cooperativismo apresenta-se como alternativa de milhares de trabalhadores que buscam alterar suas condições de vida sob a forma de organização coletiva do trabalho nas mais diversas regiões. Em um contexto adverso, da precariedade do trabalho, da falta de moradia e saneamento, da baixa renda surgem experimentos sociais que, de forma contraditória ao capitalismo, mostram caminhos possíveis de produção e reprodução da vida. Esse caminho se vislumbra através da autogestão que oferece a possiblidade de trabalhadoras excluídas encontrarem formas de valorização do trabalho.

Na avaliação do coordenador do Laboratório de Processos do Centro de Tecnologia da Ufal, Lucas Meili, a problemática do descarte das conchas do sururu, resultantes da malacocultura [é o termo técnico utilizado, basicamente, para designar toda atividade de criação ou cultivo de moluscos para consumo humano] em Alagoas, representa um desafio ambiental significativo.

“Quando descartadas inadequadamente, essas conchas podem gerar impactos nocivos nos ecossistemas marinhos e estuarinos. O acúmulo de resíduos leva à decomposição microbiana, resultando na liberação de substâncias tóxicas e na proliferação de vetores de doenças, o que agrava problemas de saúde pública. Além disso, o excesso de matéria orgânica nos ambientes aquáticos pode causar eutrofização, promovendo o crescimento descontrolado de microrganismos, como dinoflagelados responsáveis por marés vermelhas”.

Segundo ele, para mitigar esses problemas, é fundamental desenvolver tecnologias que permitam o aproveitamento das conchas, como a utilização do carbonato de cálcio presente nelas, reduzindo assim a extração desse mineral em jazidas naturais.

Coordenador do Laboratório de Processos do Centro de Tecnologia da Ufal, Lucas Meili (Foto: Arquivo pessoal)

“A destinação correta dos resíduos da malacocultura não só contribui para a preservação ambiental, mas também é essencial para a sustentabilidade da indústria de moluscos, que fornece proteína animal a cerca de 1,5 bilhão de pessoas em todo o mundo”, discorreu Lucas Meili, que é bolsista de produtividade nível 2 em pesquisa do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).

Em 2023, ele foi reconhecido entre os 2% mais citados pesquisadores do mundo, conforme a listagem ‘Science-Wide Author Databases of Standardized Citation Indicators’, organizada por pesquisadores da Universidade de Stanford e publicada pela editora holandesa Elsevier. Essa listagem considera tanto a relevância quanto a influência das publicações ao longo do tempo.

Com uma sólida formação em engenharia química, suas áreas de atuação incluem processos de separação, tratamento de água e efluentes, e síntese de materiais, com ênfase em adsorção de poluentes, síntese de biocarvão e pontos quânticos de carbono. Suas contribuições acadêmicas têm um impacto significativo no desenvolvimento de métodos eficientes para o tratamento ambiental.

Lucas Meili explicou que a disposição inadequada dos resíduos da malacocultura pode causar prejuízos econômicos, ambientais e sociais. No entanto, a literatura aponta diversas formas de beneficiamento, como o manejo adequado da cultura e a transformação das conchas calcárias em ativos econômicos. As principais demandas envolvem a utilização desse grande volume de resíduos e sua conversão em produtos úteis, que vão desde aplicações na construção civil e farmacologia até insumos agrícolas, tratamento de efluentes, suplementos alimentares e catalisadores.

“Nossos trabalhos exploram a utilização da concha de sururu como um agente adsorvente e catalisador em processos oxidativos avançados para o tratamento de águas contaminadas com corantes e poluentes emergentes. Foram desenvolvidos trabalhos de conclusão de curso de graduação, dissertações de mestrado e teses de doutorado. Além disso, é importante ressaltar que grande parte dos trabalhos desenvolvidos foram publicados em revistas de circulação internacional e com bons fatores de impacto, corroborando a qualidade dos trabalhos desenvolvidos”, detalhou.

Lucas Meili citou que nas investigações a concha de sururu foi utilizada como catalisador em processos oxidativos avançados para a degradação de poluentes emergentes, como fármacos e pesticidas.

“Os resultados demonstraram que, quando combinada com agentes oxidantes, a concha acelera as reações de degradação, levando a uma redução significativa na concentração desses contaminantes. A performance catalítica da concha de sururu é notável, apresentando estabilidade e reutilização em múltiplos ciclos de reação. Além de efetiva, essa abordagem propõe uma forma de valorização dos resíduos da indústria pesqueira, contribuindo para um ciclo sustentável. Assim, a concha de sururu emerge como uma solução inovadora para desafios contemporâneos no tratamento de águas”.

Banco social foi criado para fortalecer economia do bairro

De acordo com Lisania Pereira, fundadora do Banco Social Laguna e presidente do Instituto Mandaver, o objetivo por trás da criação do banco no Vergel do Lago foi o “fortalecimento da economia no território, mantendo a riqueza produzida circulando no bairro”. O bairro em questão se situa na costa da capital alagoana e é banhado pela gigante Laguna Mundaú, tem forte fragilidade econômica, havendo uma renda média das famílias por volta de R$ 748 e uma renda per capita de R$ 324. Sendo parte dessa renda, 83% unicamente para itens de sobrevivência. A informação foi dada para a reportagem no final de abril de 2023.

Na ocasião, Pereira disse: “atualmente o funcionamento do banco se dá a partir de frentes específicas. A primeira é através de uma linha socioambiental eco sururu – onde as mulheres que fazem parte da cadeia do sururu trazem a casca que vai passar pelo processo do reaproveitamento no entreposto e elas vão receber a moeda social. E a segunda linha é o microcrédito com foco na cadeia produtiva de pequenos negócios que estão iniciando ou querem acelerar. Aí elas passam por uma capacitação e treinamento e recebem o dinheiro. E a terceira frente é a parte social de transferência de renda que é o auxílio Sururote, onde algumas famílias que estão dentro do Programa Favela 3D recebem esta ajuda enquanto estiverem no programa”, explicou.

Cédulas da moeda social Sururotes (Foto: Sandro Lima)

O banco é importante não só pelo desenvolvimento econômico, mas pela questão educacional que se propõe como a educação empreendedora, ambiental, financeira e em especial o fortalecimento da economia local, “uma vez que circula dentro do ecossistema do Vergel estimulando os pequenos negócios e a criação de outros”.

Sebrae: capacitação e consultoria para projeto crescer

O Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas em Alagoas (Sebrae/AL), também foi um parceiro inicial deste projeto inovador na periferia de Maceió. Ele ficou responsável pelo estudo de mercado para analisar a viabilidade da instalação do banco, assim como prestou consultorias para as marisqueiras, comerciantes e personagens envolvidos.

Ana Madalena Sandes, responsável no Sebrae/AL pelos Negócios de Impacto Social, explica que a economia circular é um modelo econômico que busca reduzir o desperdício de recursos e a poluição, enquanto promove a sustentabilidade e o bem-estar da sociedade e ainda ajuda na movimentação financeira de um determinado bairro ou localidade.

Segundo o Instituto Ellen Macarthur, a economia circular é baseada em três princípios, orientados pelo design:

• Eliminar resíduos e poluição

• Circular produtos e materiais (no seu valor mais alto)

• Regenerar a natureza

“A economia circular é sustentada pela transição para energias e materiais renováveis e dissocia a atividade econômica do consumo de recursos finitos. Trata-se de um sistema resiliente e positivo para as empresas, para as pessoas e para o meio ambiente”, explica Sandes.

Ana Madalena Sandes, responsável no Sebrae/AL pelos Negócios de Impacto Social (Foto: Edilson Omena)

A consultora, que conhece a moeda social Sururotes, avalia quer ter o equipamento é de suma importância para o fortalecimento da economia na região. “No caso da Sururote, a iniciativa se baseia nos princípios da Economia Circular, já que visa reduzir o descarte de cascas de sururu, reutilizando-as. As marisqueiras entregam essas conchas lavadas e as trocam pela moeda Sururote. Já em relação à moeda utilizada pela comunidade de Pindorama, não tenho certeza se ela segue os princípios da Economia Circular, mas certamente é fundamentada na valorização da economia local”.

Para Sandes, trabalhar essa movimentação com os comerciantes de uma localidade não é tão difícil, já que todos podem sair ganhando. “A proposta da moeda social é incentivar a economia solidária e promover a inclusão financeira de pessoas, fazendo a economia local se fortalecer. A adoção da economia circular é essencial para todos, pois seu princípio baseia-se na circularidade do consumo de produtos, espelhando o design da natureza, onde tudo é completamente aproveitado, sem geração de resíduos”.

Ana Madalena Sandes afirma que o Sebrae/AL vem atuando com esse propósito de fortalecimento há muito tempo. “O Sebrae trabalhou por muito tempo com as cooperativas de reciclados, que trabalha a circularidade do produto. Realizamos um estudo de viabilidade para a implantação de um banco social no bairro do Vergel, com foco na moeda social. Integrávamos o grupo Maceió Inclusiva, formado por diversas instituições dedicadas a encontrar soluções alternativas para o descarte da casca de sururu, que, à época, representava um grave problema ambiental devido ao despejo diário de cinco toneladas”.