Enio Lins

Xica da Silva, Beto Leão e outras lembranças

Enio Lins 12 de março de 2025

PARA ESTA QUARTA-FEIRA está programada no Cine Arte Pajuçara a exibição de “Xica da Silva”, longa-metragem concebido em 1976, dirigido por Cacá Diégues, baseado em obra de João Felício dos Santos, carioca especializado em romances históricos (e de foco contestador aos lugares-comuns), que já havia lhe inspirado “Ganga Zumba” (1964).

PERSONAGEM REAL, de fulgurante vida no século XVIII, Francisca da Silva de Oliveira foi transformada em figura mitológica no século XIX, quase 100 anos depois de sua morte. Nasceu como cativa, em 1731, filha da escrava africana Maria da Costa (nativa da Costa da Mina, território hoje partilhado por Benin e Nigéria) com o português Antônio Caetano de Sá. Morreu em 1796, aos 65 anos, como liberta e mulher de posses que chegou a ser proprietária de 104 escravos. Mãe de 14 filhos e filhas, 13 tendo como pai João Fernandes de Oliveira (1720/1779) seu companheiro por 17 anos, entre 1753 e 1770.

MINEIRA DA REGIÃO DE DIAMANTINA (antigo Arraial do Tijuco), Chica da Silva tornou-se personagem nacional com a publicação, em 1868, do livro “Memórias do Distrito Diamantino da Comarca do Serro Frio”, escrito por Joaquim Felício dos Santos (1828/1895), tio-avô de João Felício dos Santos (1911/1989), autor da biografia romanceada “Xica da Silva”, editada em 1976. Muito bem, e nesse genuíno tutu mineiro com tempero carioca, onde foi que Cacá Diégues encaixou Alagoas? Do nada, criou Matias, um personagem leve, solto e feliz, próximo à protagonista Xica, e o encaixou, dentre outras cenas, na apoteótica passagem (entre 1:01’ e 1:03’) da caravela de brinquedo que João Fernandes construiu para sua amada farrear, na falta de mar, num lago igualmente cenográfico.

BETO LEÃO, ALAGOANO DA GEMA, foi o personagem Matias. Alberto Leão Maia nasceu em 1949 na cidade de Quebrangulo (há quem diga Palmeira dos Índios), foi artista múltiplo: ator, diretor, cineasta, cenógrafo, compositor, produtor, poeta, pintor. Trabalhou em teatro, cinema e televisão. Brilhou no eixo Rio-São Paulo também em produções nas redes Globo e Manchete. De volta às Alagoas, esteve Secretário Estadual de Cultura, entre 1999 e 2000, no primeiro governo Ronaldo Lessa. Ainda nos anos 70, morando em Maceió, foi um dos realizadores do I Festival de Verão de Marechal Deodoro, juntamente com Solange Lages e Cármen Lúcia Dantas. Beto Leão morreu em 2015. Ao completar 10 anos de sua despedida, sua imagem retorna – plena de vida, alegria e talento – por uns poucos, mas significativos, minutos, em Xica da Silva. Matias, na pele de Beto Leão, pode ser visto em takes variados como entre 57’14” e 58’52”, na cena em que ele sugere que Xica mande construir um barco de faz-de-conta, mas em tamanho real, para que a rainha do Tijuco pudesse navegar nos “mares” das Gerais.

NAQUELES TEMPOS DA FILMAGEM de Xica da Silva, no mundo real, Beto Leão namorava Zezé Motta. Duas décadas depois, em 1999 ou 2000, ela visitou Maceió e fui convidado, por Beto, para tomar um chope com eles. Uma honra. A cerveja rolou no então Gerações, em Mangabeiras, onde hoje funciona o café da Padaria Panetutti, na Rua Paulina Maria de Mendonça, e dali – nos meus tempos de menino, nos anos 1970 – soavam os atabaques do terreiro da família da saudosa Cida, vizinha de bairro, na época em que o Loteamento Marilu era uma capoeira salpicada por raras habitações. Cida, negra como Xica, foi a primeira pessoa que vi usar de forma cotidiana o turbante e as vestes brancas das filhas-de-santo. Visão fascinante, quase diária, nos ônibus que faziam a linha Cruz das Almas – Vergel do Lago. Mas, voltando à cena do Gerações, passei aquela noite como mero ouvinte, e fã, atento aos diálogos e reminiscências de Beto e Zezé, ou de Matias e Xica.