Petrucia Camelo

PRIMAVERA EM FLOR

Petrucia Camelo 23 de setembro de 2024

Deve-se ir aonde se pode saborear o fruto da safra. Tem-se que perfazer a rota por aquilo que é sazonal, procurando o que nos conforta e nos completa, absorvendo os frutos do milagre da renovação. É hora, é dia, é tempo de o olhar se engalanar com a paisagem, de se ver a primavera em flor charmosa brotar da terra em cor, em forma, em textura e em aroma; de sentir a presença da rosa mais antiga, de gestos apurados, a sorver o cálice do sol, e, com precisão espartana, a guarnecer de beleza o mundo.

É sábio derramar o olhar da contemplação sobre as flores na primavera, sentir-se assim atraído pelo cultivo de uma perspectiva emocional, causando bons estímulos sensoriais. Sente-se como se elas fossem ternas eternamente, fossem a revelação da presença de Deus, no descansar sereno nas formas das pétalas macias, aveludadas, belas e perfumadas. “Viver de acordo com a estação é estar alerta para o despertar da primavera. Não temos como evitar reagir à luz do sol, que bate em nosso rosto, mas nossos sentidos captam e têm muito a registrar”. Mirelle Guilian, (Campus,2007).

Trazer a primavera para dentro do espaço onde se convive é renovar-se em novas inspirações, pois coisa alguma deve ser como fora antes. Precisa-se das flores em jarros floreiros, em corbelhas a ornamentarem a mobília da sala, a austeridade dos momentos taciturnos, nas reuniões decisórias, formais, nos locais onde a alegria e os prazeres se completam. A exemplificar, precisa-se, ainda, nas praças, de canteiros em flor, de locais arborizados propícios à sombra e a sonhos, onde pousam aquelas criaturas aladas que não devem ser engaioladas, e, no passeio, viéis florais a acompanhar passos trôpegos de criaturas humanas que precisam do sol e do ar rarefeito, onde risos de crianças despertam a continuidade da vida e onde enseja a vida sempre há convívio de casais desejosos de estar a sós e flores e flores nos altares onde o espírito busca a união com Deus.

Porém, no desabrochar da flor, ela respira o inevitável, expõe-se a todo tipo de sorte, deixa atrair a fluidez do olhar oculto nas sombras que vivem à espera da oportunidade para manifestar o contraditório. Mas não se tem como a proteger, cronometrar a precisão do rebento da cepa a encher-se do encanto de folhas viçosas, a prometer ao olhar que a acompanha o cortejo dos botões em flor, que em borbotões hão de vir a eclodir, deixando a cepa toda em flor; mas ainda há de se ver, que ao colher a flor, colhem-se também os espinhos.

O mundo se move entre volteios de primaveras, lembradas pelos registros no colorido silencioso das rosáceas nos vitrais de catedrais, como se fosse um amar desfolhado; mas, apesar da beleza, a estação da primavera também sofre discriminação, pois nem sempre a esperam condignamente; há escassez de flor em bairros inteiros, ao passar não se encontra nem uma flor, flores plantadas à porta, ao derredor dos edifícios, nas praças, inúmeras descaracterizadas, tal é o envolvimento das pessoas com a aspereza do cotidiano, com suas fraquezas, frustrações e valorização de situações banais e do desinteresse governamental.

A primavera, se assim se deseja, traz as flores mais próximas debruçadas sobre portões, ao modo de jardim; pode-se reuni-las em vasos, em nichos de caramanchões a espargirem o aroma, para que não se saiba tardiamente, qual a última rosa a colher, a ter-se da primavera, para que o espírito não diga, não sinta, não amargue depois: “...tarde te encontrei, tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova! Tarde demais eu te amei. Fulguraste e brilhaste... a espargir fragrância...” (Confissões, São Paulo, Paulus, p.277).