Alisson Barreto

Sílvio Santos foi ali, para o baú da história

Alisson Barreto 23 de agosto de 2024

Sílvio Santos se foi há sete dias, número cabalístico que, no Brasil, marca uma celebração religiosa, católica, que não existe no resto do mundo das fés abraâmicas (judaísmo, cristianismo, islamismo). A “missa do sétimo dia” é uma jabuticaba. Crendices à parte, vamos pegar um bigú nesse mito de que sete dias depois da morte é o momento de lembrar de quem partiu.

SEM PATRULHAMENTO

Tem circulado a opinião (relevante) de que os finados Delfim Netto e Sílvio Santos seriam tão-somente “abusadores do Brasil”, pelas posições de ambos ao lado da ditadura militar de 64, e este fato determinaria que falar sobre a relevância de ambos, em quaisquer campos, seria algo execrável. Não deixa de ter razão a cobrança de os identificar como apoiadores dos militares golpistas – sim, ambos foram. Mas por essa linha de raciocínio deveríamos riscar Nelson Rodrigues do mapa... e Dom Hélder Câmara, em sua mocidade integralista? É um tipo de pensamento combativo, inflexível – respeito, mas não sigo. Nos casos dos obituários de Delfim e Sílvio, data vênia, acompanho os votos de Lula.

UMAS PALAVRAS

Até prova em contrário, o fundador do SBT é caso único, no nosso país, de um comunicador que construiu uma rede de televisão a partir de si próprio. Isso não é comum no capitalismo, aqui ou alhures. Roberto Marinho, por exemplo, partiu da base deixada por seu pai, Irineu Marinho, n’O Globo. A Bandeirantes nasceu da coligação entre o empresário Jorge Saad e seu sogro, o político Adhemar de Barros; a Record surgiu sob o comando do empresário Paulo Machado de Carvalho (hoje sob o púlpito do empresário-pastor Edir Macedo). Fiquemos três nessas citações. O fato é que Senor Abravanel, vulgo Sílvio Santos, fez história duplamente ao fundar, em 19 de agosto 1981, o Sistema Brasileiro de Televisão: um jornalista-empresário que inventou sua própria rede (um pouco antes, nos anos 70, SS adquiriu 50% das ações da Bandeirantes); e esta rede de TV ser ancorada no programa de auditório animado pelo proprietário da emissora. Destaque-se igualmente a base popular (populista) dos programas de auditório e da programação geral da nova televisão, um diferencial nacional, mesmo considerando as características de apresentadores noutros canais, como Chacrinha, Bolinha, Raul Gil.

SENOR ABRAVANEL

Outras das relevâncias do “Homem do Baú” é mito do camelô. Essa ilusão coloca nas costas de quem moureja como ambulante no Brasil a responsabilidade de “fazer como Sílvio Santos: de camelô virou milionário”. Pura onda. O nome original do personagem distingue o dono do SBT como herdeiro da tradição semítica (árabes e judeus) para negócios e, de forma particular, o marcou com a linhagem Abravanel – banqueiros milionários cujo principal expoente foi Isaac Abravanel (1437/1508), financiador dos reis de Portugal e da Espanha no século XVI. Senor Abravanel, judeu praticante, uniu seu talento atávico com a malandragem carioca, treinou na camelotagem, e criou Sílvio Santos, fusão implacável e criativa para ganhar dinheiro de gente de todas as crenças. Ao contrário de seu famoso antecedente, Don Isaac, não extraiu grana prioritariamente de reis e príncipes; Senor, na pele de Sílvio, teve como freguês o povão, conhecendo-lhe as manhas, os bolsos, as necessidades, e a forma de se comunicar, nas ruas do Rio de Janeiro e São Paulo. Merece registro por sua história, por seus pioneirismos. Sim, ele foi um dos muitos “abusadores do Brasil” entre 1964 e 1985 (e homem eivado de preconceitos) – mas não se limitou a isso.