Enio Lins

A pândega olímpica em Paris e a intolerância mórbida

Enio Lins 31 de julho de 2024

Tem ocupado mais espaço no noticiário sobre a Olimpíada de Paris uma cena da cerimônia da abertura do que a competição propriamente dita. A celeuma, grande e renitente, se debulha e se renova acerca de uma representação cenográfica onde muitas almas pudicas enxergam uma sátira pecaminosa à Santa Ceia conforme famoso afresco pintado por Leonardo da Vinci numa das paredes da Igreja de Santa Maria Delle Grazie, em Milão.

ALVOS FÁCEIS

Carolas de todo o mundo uniram-se para apedrejar a produção cenográfica assumida por Thomas Jolly, diretor artístico do espetáculo, cuja ousadia como característica profissional foi lembrada pelo Estadão: “Ele ficou conhecido em 2014 com a trilogia Henrique VI, de Shakespeare, uma obra de 18 horas que apresentou no Festival de Avignon. A cerimônia dos Jogos, embora longa, foi um tanto menor: cerca de 3 horas e 45 minutos”. Jolly, desde o início da polêmica, se mantêm firme em negar quaisquer provocações e garante que não se inspirou na obra de Leonardo e sim na tradição pagã grega, berço dos Jogos Olímpicos, e lembra que sua obra “tem Dionísio, que chega nessa mesa. Está lá, porque é deus da festa (...), do vinho, e pai de Sequana, deusa aparentada ao rio [ele vincula ao Rio Sena, usado como passarela para a abertura]. A ideia era antes ter um grande festival pagão ligado aos deuses do Olimpo... Olimpo... Olimpíadas”. Mas não adiantou essa óbvia explicação, pois o pecado mortal da produção – segundo quem a ataca – foi ter usado personagens LGBTQI+ - é aí que a hipocrisia fundamentalista pinta e borda.

ERUDIÇÃO DIVERSIONISTA?

Para contestar a gritaria apoplética da cristandade, muitas vozes (várias cristãs) se alevantaram para defender a cenografia olímpica, argumentando que a obra usada como referência teria sido uma das muitas que retratam banquetes entre divindades pagãs, como “A Festa dos Deuses”, trabalho de 1514, do italiano Giovanni Bellini. Na mesma linha de raciocínio, têm sido lembradas tanto a tela homônima “Festa dos Deuses”, pintada em 1640 pelo holandês Jan Harmensz van Bijlert, quanto “O banquete dos deuses”, quadro atribuído à dupla flamenga Hendrick van Balen e Jan Brueghel de Velours, de1610. Fartas teses têm sido escancaradas, apressadamente, como escapatórias para a acusação de blasfêmia desferida contra a cena olímpica. Essa erudição toda, entretanto, não pode ser usada para fugir do debate sobre – pelo menos – duas questões centrais: Pode-se usar personagens LGBTQI+? Pode-se usar referências religiosas?

ARTE, LIBERDADE E LIMITES

Todo evento público, universal, precisa ter cuidados especiais e limites mais rigorosos que as manifestações artísticas usuais, voltadas para públicos específicos, opcionais (teatro, cinema, literatura, artes plásticas...). A abertura de uma Olimpíada deveria ser concebida para atender a todas as audiências, até por sua proposta universalista – daí, colocar em pauta a temática religiosa, seja pagã, cristã, muçulmana ou quaisquer outras, é gesto arriscado que pode ir além do bate-boca (lembram-se do Charlie Hebdo?). Igualmente é necessária muita atenção para não justificar o que se considera “agressão” para uma fé como algo permissível contra outra crença, e o debate “pictórico” está deixando brechas para interpretações do tipo “o paganismo pode levar pancada”. Está sendo também desviada a atenção da indispensável defesa do uso livre, leve e solto da representação LGBTQI+, desde que não seja estereotipada.

Em resumo, o ouro está indo mesmo é para os preconceitos de todos os tipos.