Enio Lins

A fome como arma para eliminação de populações indesejáveis

Enio Lins 04 de julho de 2024

No dia 27 de junho a Câmara Municipal de São Paulo aprovou, em primeira votação, projeto de lei que procura impedir a doação de alimentos a moradores de ruas e praças. Multas pesadas, na ordem de R$ 17 mil, serão aplicadas contra pessoas físicas e jurídicas flagradas no “delito” de doar alimentação aos vulneráveis. Para se habilitar da dar comida a alguém com fome, a proposta elenca rosários de exigências dificilmente capazes de serem atendidas por quem queira exercer esse gesto de solidariedade.

ÓDIO AOS POBRES

Quais razões motivariam o impedimento da milenar atitude de doar alimento a quem tem fome? Todas as religiões inscrevem em suas normas e livros sagrados a ação de solidariedade ao próximo como recomendação ou mesmo obrigação, sendo esse um dos degraus para se ascender ao paraíso na maioria das crenças. Descrentes e ateus também se lançam, historicamente, às iniciativas destinadas a amainar a fome alheia. Que tipo de ideologia aponta para o isolamento dos famintos em sua desgraça?

DESUMANIDADE MILITANTE

Fato é que pululam, cada dia com mais força e maior atrevimento, ideias baseadas na eliminação de quem seja considerado “perdedor” e/ou “incapaz”. O famigerado “darwinismo social” (denominação tremendamente injusta ao grande Charles Darwin), numa caricatura cruel das teses sobre a evolução das espécies, defende que os seres considerados “inferiores” – por raça, condição social ou de saúde – sejam excluídos da sociedade por serem “inaptos”, e para que os “aptos” possam prosperar com mais facilidade. O nazismo praticou com rigor mortal esse tipo de crença na necessidade de dar uma solução final aos indesejáveis.

SOLIDARIEDADE HUMANA

Não é a caridade solução para os problemas sociais, assim como doações de comida não resolvem a tragédia da fome. Estamos falando de paliativos, de gestos individuais ou coletivos capazes de minorar os sofrimentos de uma população marginalizada e despossuída de tudo, até da esperança. Verdade é o alerta feito por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira em “Vozes da Seca”: “Uma esmola a um homem que é são/ Ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão”. Sim, sim. A eliminação da fome e a inclusão social só podem ser enfrentadas para valer com políticas públicas e medidas econômicas de larga visão social. É um erro acreditar no assistencialismo como via de erradicação da miséria, mas o gesto de solidariedade humana de dar um pão a quem tem fome não pode ser interpretado como um ato de delinquência.

SOLUÇÃO FINAL?

É essa lei em processo de aprovação pela Câmara Municipal de São Paulo um passo a mais num caminho que tem ganhado força no Brasil desde 2018, com a assunção do ideário covarde e desumano que é a marca do “mito”. Não se trata apenas de uma ação da pauliceia de extrema-direita desvairada que enxerga nas ações do Padre Lancelotti uma ameaça terrível, mas mais uma manifestação do entendimento verbalizado pelo então deputado Jair Messias, em termos transcritos no Diário da Câmara dos Deputados, em 16 de abril de 1998, e reproduzidos pelo Blog do Otávio Guedes/G1, em 16/03/2022: “realmente, a cavalaria brasileira foi muito incompetente. Competente, sim, foi a cavalaria norte-americana, que dizimou os índios no passado e hoje não têm esse problema no país”. Convém não esquecer que, além da bala, a fome foi a principal arma para a dizimação das populações originárias da América do Norte, tidas como “inferiores” e “vagabundas” pelos “homens de bem” do velho oeste, talkey?