Alisson Barreto

A engenharia de realidades subjetivas

Alisson Barreto 07 de junho de 2024
A engenharia de realidades subjetivas
A engenharia de realidades subjetivas - Foto: Alisson Barreto

A engenharia de realidades subjetivas

A era da realidade subjetiva e a falácia das bolhas de verdades subjetivas


Quem nunca se deparou com uma palavra sendo interpretada com um sentido diferente do que costumava empregar? O que nem todos percebem é que nem sempre é por desconhecer os significados dos termos, às vezes é simplesmente por mudança no seu uso, uma ressignificação.


Há, como se depreende, uma verdadeira desconstrução da segurança etimológica das palavras. Aliás, não apenas em seus termos como também em símbolos, muitas vezes utilizados por anos com um significado e transformados para sentidos diferentes.


Atualmente, nota-se uma reconsideração de termos e símbolos, às vezes até uma desconstrução de significado com força capaz de gerar desconexão entre o real objetivamente existente e a observância subjetiva coletivamente convencionada. Isso porque, algumas vezes, o empenho em acolher as subjetividades acabam por ignorar as existências objetivas.


Em outras palavras, uma pedra poderia ser apresentada reiteradamente como tempero de sopa até que as pessoas começassem a colocar tal pedra na sopa. Com o passar do tempo, tal pedra passaria a ser chamada de tempero, ainda que não o seja, mas será considerada e utilizada como tempero.


Durante a idade média e moderna, sociedades ocidentais, predominantemente marcadas pelo pensamento judaico cristão, o ocidental comum, via o arco-íris como símbolo da aliança de Deus com os homens. Hoje, o cidadão comum vê-lo como símbolo do movimento pertinente à ideologia de gênero. O arco-íris é o mesmo fenômeno físico no qual a luz branca atravessa um prisma, comumente as gotículas de água, e sofre refração e brota uma infinidade de cores.


Na busca pelo crescimento na verdade e a verificar os efeitos negativos da imprecisão no significado de termos, na Igreja, surgiu e desenvolveu-se o método científico. Na metodologia científica, um dos fatores mais relevantes é a precisão dos termos, o que se pode observar na especificidade de definições e empregos de palavras em um ramo científico. Se algo significa para alguém uma coisa e para outrem algo totalmente diferente, a comunicação pode não funcionar de forma suficiente ou adequada, levando uma pessoa a dizer algo que a outra presuma tratar-se de algo completamente diferente, ou simplesmente não entender a mensagem.


Por conseguinte, convém a, ao menos as pessoas de um mesmo ramo do conhecimento, entenderem com os mesmos significados as palavras próprias de seu ramo. Porém, com o passar do tempo, surgiram vários ramos de conhecimento, alguns dos quais passaram a usar termos que até chegam a distanciar assustadoramente de suas origens etimológicas, gerando confusões ou até mesmo descrédito ou contradição. Note-se que, por exemplo, o que é corrupção no sentido teológico é bem diferente do sentido de corrupção no sentido jurídico e o que é pessoa no sentido jurídico é bem diferente do que o é para um cristão. Até mesmo o conceito de vida de um ser humano pode ser distinto entre um médico e um biólogo ou entre um médico de hoje e um do século passado. Neste caso, não se trata de evolução da ciência médica, mas de reinterpretação dos significados e reconvenção dos termos para adequação ao pensamento de uma época, ainda que à mercê de influências ideológicas.


Na história das pessoas humanas, nota-se que isso não é novidade. No passado, discutiu-se se negro ou índio seria gente para ver se poderiam ser escravizados ou buscar justificar a escravidão. Em alguns casos, discutiu-se se a dignidade da pessoa humana poderia ser perdida, visando a autorizar a pena de morte ou a escravidão por dívida, por exemplo. Hoje, vê-se ignorar que o óvulo fecundado é um ser vivo com todas as características genéticas que ele terá em todas as fases de sua vida, visando a promover a indústria do abortamento e a suposta liberdade de algumas pessoas acreditam ter para negar o direito à vida de quem ainda não nasceu.


Nesse sentido, verifica-se que algumas pessoas chegam a defender a perda do direito à vida de outrem em razão de uma absolutização do direito de fazer o que se bem entende com o próprio corpo, como se alguém pudesse fazer algo no próprio corpo de modo a eliminar a vida de quem está no seu ventre.


Se você acredita que isso é permitido, então acredita que alguém pode fazer algo com o próprio corpo, ainda que isso implique acabar com a vida de outrem. Nessa perspectiva, quem atira em outrem apenas exerceu seu direito de dobrar o dedo que aciona o gatilho. Acaso tal pessoa não estaria exercendo seu direito de mover o dedo? Deve ser por isso, que os argumentos dos abortistas orbitam entre a alegação da suficiência de fazer o que bem entendo com o próprio corpo e a de negar a humanidade do ser em sua vida intrauterina. No primeiro sentido, absolutizam o direito de fazer algo com o próprio corpo; no segundo, relativizam os valores biológicos e teológicos para negar a dignidade da pessoa humana não nascida.


Ora, a negação de realidades objetivas para favorecimento de interpretações e interesses subjetivos, necessariamente, gera consequências. Chega-se a um ponto em que o direito à vida passa a depender do que as pessoas de uma época ou região entende ser defensável; o direito à liberdade religiosa fica à mercê da corrente político ideológica que está no poder; a liberdade de informação fica submetida a um tipo ou origem de informação e às notícias falsas passam a ser toleradas ou defendidas consoante o viés político ou ideológico que as originou.


De repente, as pessoas passam a não compreenderem os valores morais pelos quais os fins não justificam os meios; então, empenham-se em disseminar tudo o que podem para combater tudo ou todos que possam opor-se a quem ou a o que acreditam deve ser defendido. E tal empenho, levam-nas a ignorarem ou relativizarem a importância de filtros de veracidade e confiabilidade de argumentos. Eis que o medo de um risco disseminado vira disseminação de um medo capaz de espalhar uma realidade paralela ao real, ou seja, uma realidade de existência subjetiva paralela (às vezes até com tom de antagonismo) à realidade objetivamente existente.


Muitas vezes uma hipótese gera um medo e o medo engendra uma realidade subjetiva com efeitos concretos. Isso pode ser constatado em fatos políticos de esquerda ou de direita, do passado ou do presente. Muitos ditadores chegaram ao poder e nele se perpetuaram com base no medo de uma situação real ou imaginada, de um inimigo real ou inventado. Assim, bandeiras como capitalismo, comunismo ou nazismo podem ser levantadas enaltecendo ou antagonizando com empenho literalmente cativante, lançando pessoas ao cativeiro de seus próprios medos.


Em similar toada, há os que falseiam a realidade – hiperbolizando suas próprias capacidades e propostas – apresentando-se como como defensores da pátria, restauradores da grandiosidade de um país, heróis da pobreza, salvadores da economia, baluartes da honestidade etc.. Sujeitos que se erguem como heróis levantadores das bandeiras de que o povo e o país precisam.


No entanto, não se pode esquecer daqueles que trabalham nos bastidores, repetindo ressignificações de termos e símbolos até que passem de fazer sentido a serem automaticamente aceitos e tomados como verdades. São soldados que seguem suais intuições, ainda que possam advir de falseamentos, com empenho viralizante até que as existências objetivas sejam ignoradas, a verdade objetiva seja tomada como mito e as “neoverdades” subjetivas ou crenças de suas bolhas sejam as únicas suscetíveis de credibilidade.


E assim, pouco a pouco, delineiam-se dominações e a engenharia das realidades subjetivas ganha espaço e molda épocas. Resta observar se, num mundo cada vez mais globalizado, isso se pontuará por tipos de domínios específicos por regiões ou se isso acarretará guerras mundiais com fins capazes de um ponto final à humanidade ou a qualidades que a dignificam.


Por fim, é chegada a hora de analisar as correntes políticas e ideológicas da hodiernidade e indagar sobre os próprios comportamentos, diante das engenharias sociais em que se vive. Nisso, inclusive, é possível questionar a própria capacidade de amar, crer e ser coerente com o que escolheu crer e amar.


Maceió, 7 de junho de 2024.


Alisson Francisco Rodrigues Barreto