Petrucia Camelo

FESTEJO DE INVERNO

Petrucia Camelo 23 de maio de 2024

Correm sob a chuva vestígios da fauna. Aonde vão não se sabe, talvez em busca de abrigo, de sobrevivência registrados na memória herdada. No molhar do chão, liquens atapetam árvores, muros, pedras e calçadas. Instalam-se as chuvas, hospeda-se o inverno sobre verde esmeralda.

O tamborilar da chuva, ao cair não impede de ouvir-se a música dos passos a correrem desordenados, e o som do correr das águas na biqueira que faz a alegria da meninada. O clima frio muda o cardápio e, sobre a mesa, o vinho tinto acompanha o prato, o mesmo que é levado ao fogo, tomando-se quente. Tinha-se a ciência caseira de que no ventre uma nova vida vingava, assim se extrai dos relatos passados.

As chuvas catastróficas do inverno rigoroso descem feitas cortinas acinzentadas, e nos países onde há gelo, deixam o branco da neve por todos os lados, fazendo lembrar um fato histórico: o declínio das tropas de Napoleão Bonaparte; ou um fato mais simples a bola que desliza no campo molhado.

E mais ainda, as chuvas anualmente causam muitos estragos: chuvas caídas sobre as favelas de encostas que circulam as cidades, afrouxam a terra que desaba e logo noticiam-se os desastres e dias depois as providências tomadas, constantes do imediatismo, que posteriormente serão engavetadas. Os velhos e surrados cobertores contarão as histórias dos invernos passados.

Nos caminhos do interior, sob a chuva fina, caminham em filas indianas os nativos: crianças, velhos e mulheres jovens, vestidas com as cores vividas do arco-íris, cheirando a mate-verde, a água de cheiro comprada na feira. Com as sandálias nas mãos presas aos dedos, vão a casa da comadre, da rezadeira, sem faltar as idas aos festejos do inverno, rendendo homenagens a Santo Antonio, casamenteiro, a São João e a São Pedro. Vão pular fogueira, fazer adivinhação, saborear comidas típicas, dançar forró sob a latada ao som do reco-reco, zabumba, ganzá, sanfona e triângulo que faz a noite de encantamentos.

E numa cumplicidade que se espia sob as palhas da palhoça, segredos são engendrados, contados ao pé das orelhas, sob a aba do chapéu de palha, de couro molhado, impregnado de suor, misturando-se ao cheiro de aguardente e das baforadas dos cigarros de fumo de corda.

Da cumeeira descem grossos cordões d’água sulcando a terra, e ouve-se de longe, dentro da noite chuvosa, o canto da corredeira desaguando num chuá de águas escorrendo, sugadas pelo sumidouro.

Debruça-se sobre a austera paisagem o olhar desconfiado e perscrutador do sertanejo, que somente se alegra com o cair das chuvas, que trazem à luz os anfíbios sobreviventes soterrados na lama endurecida, as sementes que eclodem de novas pastagens, a cor das raras flores silvestres, os açudes que sangram.

E cada folha torna-se um leito de rio cheio derramando em bicas a chuva que cai; cada árvore é uma fonte sonora, absorvendo a água em suas raízes e toda a terra respira como se tivesse tomado um bálsamo, sentindo um gosto, aplacado a dor.

Entre as estações do ano, o inverno tem a função de trazer ao presente a memória da natureza do passado. O inverno atua sobre a terra ressequida, como se fosse o oleiro moldando a argila, ou ainda um mestre, um provedor, promovendo as potencialidades do desenvolvimento da vida.