Enio Lins

O direito da mulher interromper a gravidez vinda de estupro

Enio Lins 21 de maio de 2024

Há quatro dias o ministro Alexandre de Morares suspendeu uma resolução do Conselho Federal de Medicina cujo teor extrapolava os limites da Lei e alçava a entidade à condição legislativa. A norma, ora suspensa, dificultava o acesso ao direito legal ao aborto em gravidez provocada por estupro, proibindo o uso de uma técnica clínica, chamada “assistolia fetal”, em gestações acima de 22 semanas. A decisão, de efeito suspensivo, será submetida ao plenário do STF no próximo dia 31.

TENDÊNCIA RETRÓGRADA

Independente da posição final do STF, essa decisão liminar (provisória) é um importante freio de arrumação na acentuada curva à direita que o Conselho Federal de Medicina tem feito desde 2018, quando embarcou no jet-ski bolsonarista e passou a protagonizar cenas tão patéticas quanto perigosas, como na pandemia, ao ser conivente com tratamentos ineficientes determinados pelo “doutor Jair”, do tipo ivermectina e cloroquina. Sobre isso vale a pena ler reportagem do El País, publicada em 15/10/2021, disponível pelo link https://brasil.elpais.com/brasil/2021-10-15/como-o-conselho-de-medicina-silenciou-diante-do-negacionismo-de-bolsonaro-e-abracou-a-cloroquina.html

NEGACIONISMO MILITANTE

Além de seguir a cartilha bolsonarista – treinada para matar – no quesito do “Kit pró-Covid”, o CFM, em seu mergulho à direita, segue apresentando sintomas de forte contaminação pelo negacionismo agudo. Em janeiro deste ano – ao invés de orientar – promoveu uma “pesquisa” para saber a opinião dos médicos sobre a obrigatoriedade da vacina para crianças entre seis meses e cinco anos contra Covid-19, atitude duramente criticada pela Sociedade Brasileira de Imunizações, por “equiparar as crenças pessoais dos médicos à ciência, o que pode gerar insegurança na comunidade médica e afastar a população das salas de vacinação”. Também em 15/10/2021, em texto de Bruna de Lara, The Intercept publicou a reportagem “A guerra do CFM contra as mulheres”, onde explica que “tomado pelo bolsonarismo, Conselho Federal de Medicina passou de defensor da autonomia feminina a algoz de gestantes e mulheres que não desejam engravidar” – disponível em https://www.intercept.com.br/equipe/brunadelara/.

EPIDEMIA DE REACIONARISMO

Esses posicionamentos não são casos isolados, e sim reflexo de uma tendência reacionária que alcançou praticamente metade do País. Essa corrente usa como elementos de força centrípeta, tipo imãs, bandeiras conservadoras como a “luta contra o aborto”. Uma vez desfraldadas, atraem para si as forças do mal, mantendo-as em constante agitação e mobilização. Sabe-se, por exemplo, que o aborto é largamente praticado no Brasil e nem tão às escondidas assim. As camadas sociais de melhor posição econômica praticam o aborto sem alarde e sem riscos, enquanto as mulheres das periferias se expõem a métodos perigosos, aos rigores da lei e à execração pública. No romance “Olhai os Lírios do Campo”, de 1938, Érico Veríssimo expõe o problema e a hipocrisia sobre esse tema através da tragédia da personagem Dora. A revista Realidade publicou, nos idos de 1968, a impactante reportagem “O Canto da Cureta” descrevendo os horrores sofridos por moças que tentavam interromper sus gravidezes e eram obrigadas a procurar o submundo aborteiro.

Mas não é o direito (genérico) do aborto que se discute hoje no Brasil. O que está em risco é o direito assegurado por Lei, específico, de que mulheres que tenham engravidado em consequência de estupro possam abortar – se assim o desejarem – com a devida assistência médica. Resta torcer para, no dia 31, o pleno do STF não abortar a decisão do Ministro Alexandre de Moraes.