Enio Lins
O direito da mulher interromper a gravidez vinda de estupro
Há quatro dias o ministro Alexandre de Morares suspendeu uma resolução do Conselho Federal de Medicina cujo teor extrapolava os limites da Lei e alçava a entidade à condição legislativa. A norma, ora suspensa, dificultava o acesso ao direito legal ao aborto em gravidez provocada por estupro, proibindo o uso de uma técnica clínica, chamada “assistolia fetal”, em gestações acima de 22 semanas. A decisão, de efeito suspensivo, será submetida ao plenário do STF no próximo dia 31.
TENDÊNCIA RETRÓGRADA
Independente da posição final do STF, essa decisão liminar (provisória) é um importante freio de arrumação na acentuada curva à direita que o Conselho Federal de Medicina tem feito desde 2018, quando embarcou no jet-ski bolsonarista e passou a protagonizar cenas tão patéticas quanto perigosas, como na pandemia, ao ser conivente com tratamentos ineficientes determinados pelo “doutor Jair”, do tipo ivermectina e cloroquina. Sobre isso vale a pena ler reportagem do El País, publicada em 15/10/2021, disponível pelo link https://brasil.elpais.com/brasil/2021-10-15/como-o-conselho-de-medicina-silenciou-diante-do-negacionismo-de-bolsonaro-e-abracou-a-cloroquina.html
NEGACIONISMO MILITANTE
Além de seguir a cartilha bolsonarista – treinada para matar – no quesito do “Kit pró-Covid”, o CFM, em seu mergulho à direita, segue apresentando sintomas de forte contaminação pelo negacionismo agudo. Em janeiro deste ano – ao invés de orientar – promoveu uma “pesquisa” para saber a opinião dos médicos sobre a obrigatoriedade da vacina para crianças entre seis meses e cinco anos contra Covid-19, atitude duramente criticada pela Sociedade Brasileira de Imunizações, por “equiparar as crenças pessoais dos médicos à ciência, o que pode gerar insegurança na comunidade médica e afastar a população das salas de vacinação”. Também em 15/10/2021, em texto de Bruna de Lara, The Intercept publicou a reportagem “A guerra do CFM contra as mulheres”, onde explica que “tomado pelo bolsonarismo, Conselho Federal de Medicina passou de defensor da autonomia feminina a algoz de gestantes e mulheres que não desejam engravidar” – disponível em https://www.intercept.com.br/equipe/brunadelara/.
EPIDEMIA DE REACIONARISMO
Esses posicionamentos não são casos isolados, e sim reflexo de uma tendência reacionária que alcançou praticamente metade do País. Essa corrente usa como elementos de força centrípeta, tipo imãs, bandeiras conservadoras como a “luta contra o aborto”. Uma vez desfraldadas, atraem para si as forças do mal, mantendo-as em constante agitação e mobilização. Sabe-se, por exemplo, que o aborto é largamente praticado no Brasil e nem tão às escondidas assim. As camadas sociais de melhor posição econômica praticam o aborto sem alarde e sem riscos, enquanto as mulheres das periferias se expõem a métodos perigosos, aos rigores da lei e à execração pública. No romance “Olhai os Lírios do Campo”, de 1938, Érico Veríssimo expõe o problema e a hipocrisia sobre esse tema através da tragédia da personagem Dora. A revista Realidade publicou, nos idos de 1968, a impactante reportagem “O Canto da Cureta” descrevendo os horrores sofridos por moças que tentavam interromper sus gravidezes e eram obrigadas a procurar o submundo aborteiro.
Mas não é o direito (genérico) do aborto que se discute hoje no Brasil. O que está em risco é o direito assegurado por Lei, específico, de que mulheres que tenham engravidado em consequência de estupro possam abortar – se assim o desejarem – com a devida assistência médica. Resta torcer para, no dia 31, o pleno do STF não abortar a decisão do Ministro Alexandre de Moraes.
Enio Lins
Sobre
Enio Lins é jornalista profissional, chargista e ilustrador, arquiteto, membro efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas. Foi presidente do DCE da UFAL, diretor do Sindicato dos Jornalistas, vereador por Maceió, secretário de Cultura de Maceió, secretário de Cultura de Alagoas, secretário de Comunicação de Alagoas, presidente do ITEAL (Rádio e TV Educativas) e coordenador editorial da OAM.