Enio Lins
A tragédia gaúcha e a tragédia das “revoltas na rede”
Dentre as inúmeras charges sobre o desastre que assola o Rio Grande do Sul, uma foi escolhida “pra Cristo” e tem sido levada, sob açoite, ao calvário midiático. O desenho do cartunista Jean, publicado no jornal Folha de São Paulo tem apanhado mais que pandeiro de chegança – numa mistura de incompreensão, ignorância e injustiça que, há muito, virou moda no mundo digital.
MANCHETE RECORRENTE
Repetida à exaustão, há tempos, o título “Causou revolta nas redes sociais” carimba – e condena instantaneamente – com o vezo próprios das santas inquisições, o que possa considerar como “pecados mortais” dos mais variados tipos, muito além dos sete tidos como “capitais” e dos dez mandamento mosaicos. O termo “lacração” tornou-se de uso corrente para definir a ação de linchamento digital de quem quer que caia nas malhas finas da fiscalização da moral, dos bons costumes, do patriotismo e outros valores próprios dos “homens de bem”.
JEAN E SEU TRAÇO SEM ERROS
Apois está sendo assim: Jean Galvão, cartunista na Folha, publicou uma charge onde sobre o teto de uma casa alagada até a beirada das telhas, uma criança tenta consolar outra ainda menor, dizendo “Não chora, vai alagar ainda mais” enquanto um casal adulto, em apreensão, observa a catástrofe. Pronto: o mundo da moral e dos bons costumes desabou em mais uma patriotada que está unindo gente à esquerda, à direita, e ao centro, numa cruzada de ataques pelo que consideram “deboche”.
CHARGE CORRETA
Podendo ser considerado um cartum, posto ser um quadro perene (pode ser usado para qualquer enchente em qualquer lugar e a quaisquer momentos), o desenho retrata a inocência infantil diante de uma tragédia e a tentativa de exercer a solidariedade à pessoa próxima mesmo diante de uma realidade catastrófica. E, convenhamos, gente adulta de todas as ideologias: vai alagar ainda mais, não chorem, e vamos à luta. Vamos nos preparar, pois dias piores virão, isto é líquido e certo.
PREVISÕES DO TEMPO
Infelizmente para o mundo não eram, nem são, notícias falsas as previsões sobre os efeitos desastrosos das mudanças climáticas. E ação humana é uma das causas dessa tragédia anunciada – não é a única causa (como creem alguns), mas todas as iniciativas predatórias levadas adiante, em ambiência global e ritmo industrial cada dia mais acelerado, especialmente ao longo dos últimos 150 anos, têm contribuído decisivamente para a degringolada das condições ambientais, em prejuízo para a vida de uma série de seres, entre estes os humanos.
INQUISIÇÃO DIGITAL
Para além da Natureza, a ação predatória de humanos que se consideram arautos do bem contra o mal, se espalha pelas redes sociais. Chova ou faça sol, Torquemadas estão sempre de plantão mandando para a fogueira quem identifiquem como criatura herética. Para não se afastar do campo do desenho, no final de 2022, uma caricatura do craque africano Mbappé postada no perfil Jornalistas Livres ficou presa nas grades lacradoras e virou cinzas, pois assim que os primeiros internautas a consideraram “racista” – uma inverdade grosseira e falsa – o site excluiu o desenho e ainda publicou nota de retratação, desconsiderando o debate sobre o tema e cassando o direito de defesa de uma obra de arte e de quem a fez. Nesses dias chuvosos, espera-se que a Folha resista, e não se deixe levar pela enxurrada inquisitória. Ao Jean, abrigo e aplausos!
Enio Lins
Sobre
Enio Lins é jornalista profissional, chargista e ilustrador, arquiteto, membro efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas. Foi presidente do DCE da UFAL, diretor do Sindicato dos Jornalistas, vereador por Maceió, secretário de Cultura de Maceió, secretário de Cultura de Alagoas, secretário de Comunicação de Alagoas, presidente do ITEAL (Rádio e TV Educativas) e coordenador editorial da OAM.