Enio Lins

Insistindo no tema: uma lei que iguala vítima ao criminoso é uma droga

Enio Lins 18 de abril de 2024

Desculpem o repeteco, mas essa pauta precisa ser revisitada por conta do recente posicionamento do Senado. Trata-se da Proposta de Emenda Constitucional “Pablo Escobar”, a PEC que iguala traficante a consumidor, e iguala também qualquer tipo e quaisquer quantidades de droga considerada ilícita. Poderia também se chamar de PEC “Fernandinho Beira-Mar”, pois apenas o tráfico será beneficiado pelo sinal de igualdade colocado entre o criminoso e a vítima.

OVERDOSE SENATORIAL

Largo foi o placar favorável à PEC do Tráfico no Senado: 53 x 9 votos na primeira rodada e 52 x 9 na segunda, quando seriam necessários 49 sufrágios para a aprovação da proposta, que agora vai ao plenário da Câmara dos Deputados em busca de, no mínimo, 308 votos favoráveis para ser enfiada na Carta Magna como um dispositivo constitucional (!) – e não lei ordinária, como seria o status correto para esse tipo de norma, mesmo que equivocada, ou viciada, como a em tela.

DISPUTA ENTRE OS PODERES

São uníssonas as vozes abalizadas na mídia que apontam como motivação única para tamanha “unidade na ação” a demonstração de força do poder parlamentar contra o poder judiciário, pois este estaria se excedendo no cumprimento da lei, e obrigando vários segmentos das elites ao seguimento da Constituição – coisa inadmissível para a vasta camada de apaniguados, dependentes de overdoses de impunidade. Mas o país pagará preço altíssimo por essa diatribe congressual.

AGRAVAMENTO DO PROBLEMA

Sim, é um gravíssimo problema no Brasil e no mundo o consumo de drogas. Relembrando que a pesquisa mais recente na área, divulgada pela Fiocruz em 2019, indicou que “3,2% dos brasileiros usaram substâncias ilícitas nos 12 meses anteriores à pesquisa, o que equivale a 4,9 milhões de pessoas”. Hoje o número deve ser maior, e amanhã esses mais de cinco milhões de vulneráveis estarão somados às listas de criminosos, transformados – numa canetada – de vítimas em algozes.

PRINCIPAL DROGA

E mais, se consideramos “drogas” como substâncias capazes de alterar o comportamento e prejudicar a saúde de quem usa e de quem se vicia, o estudo Fiocruz indica que o álcool é a principal delas: “aproximadamente 2,3 milhões de pessoas apresentaram critérios para dependência de álcool nos 12 meses anteriores à pesquisa” enquanto “46 milhões (30,1%) informaram ter consumido pelo menos uma dose [de álcool] nos 30 dias anteriores”. Parece que o Congresso está embriagado pela briga com o Judiciário, dirige em alta velocidade, e sem bafômetro nas proximidades.

MILHÕES DE NOVOS CRIMINOSOS

Em sendo aprovado esse trambolho constitucional, se vislumbra, desde já, mais uma tragédia para a segurança pública nacional. Pois ficará nas mãos dos agentes públicos que tiverem interesses nessa conturbada área, as interpretações práticas de uma norma constitucional que diz ser o traficante igual ao usuário e que tanto faz a quantidade de droga portada (ou em flagrante consumo) – o que vale como uma autorização ampla, geral e irrestrita para descer o cipó de aroeira no lombo de quem se incluir nesse vastíssimo círculo vicioso.

IGUALANDO DESIGUAIS

Apesar de firulas no texto, tais como “deverá haver distinção entre traficante e usuário... O usuário terá penas alternativas à prisão...”, quando se cristalizar – na Constituição – o conceito de traficante e usuário como bandidos, esse esdruxulo dispositivo só ajudará ao tráfico, cujos integrantes em todos os níveis serão misturados às vítimas de sua atividade criminosa, e, quem sabe, também poderão usufruir de penalidades alternativas à prisão convencional (por que não?).