Enio Lins

Quem não tem teto tem cidadania: uma questão de Justiça Federal

Enio Lins 23 de março de 2024

Não é de hoje o drama de quem sobrevive na rua, entregue à própria sorte. Da imponente Londres, sede do que foi o maior e mais rico império moderno, o termo “homeless” ou “homelessness” está registrado desde 1857, e se espalhou por boa parte do mundo, e aqui traduziu-se como “sem-teto”, ou “sem-abrigo”, ou “moradores de rua” – uma tragédia humana e social em todas as línguas.

No Brasil, o sofrimento dessa população ganhou mais destaque por conta, dentre outras ações, da atuação do padre Júlio Lancelotti, vigário episcopal para a Pastoral do Povo da Rua da Arquidiocese de São Paulo. O religioso tornou-se um dos alvos preferidos da estupidez que grassa país afora, sendo vítima de todo tipo de difamação e hostilidades por quem acha que morar na rua é castigo divino ou vagabundagem.

JUSTIÇA NA RUA

Em boa hora, a Justiça Federal em Alagoas realiza o projeto Vozes, colocando em ação o disposto na “Resolução 425/2022 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de instituir, no âmbito do Poder Judiciário, a Política Nacional de Atenção a Pessoas em Situação de Rua e suas interseccionalidades. O programa prevê mutirões, ações de capacitação e de efetivação do acesso ao Sistema de Justiça” – informa a Secom da JFAL. Taí uma Justiça de olhos bem abertos, no bom sentido.

Sem alterar a imparcialidade e impessoalidade na apreciação dos processos usuais, a Justiça Federal trata de “fazer o bem vendo a quem”, no caso, enxergando quem mais precisa do olhar das instituições públicas, e o Tribunal de Justiça de Alagoas se chegou. Pela JFAL estão o juiz federal Antônio Araújo e a juíza federal Aline Carnaúba. No TJ, essa missão coube ao desembargador Tutmés Ayran.

SANGUE NA RUA

Reconhecer cidadania ao povo das ruas é algo além da solidariedade. Não é “ter pena”, são direitos a reconhecer. Violências deixaram marcas indeléveis na memória brasileira recente, como o assassinato do índio Galdino (em 20/04/1997, jovens da classe média “acharam” que o pataxó baiano, que dormia num ponto de ônibus em Brasília, “era mendigo”, e tocaram fogo nele) e a Chacina da Candelária (em 23/07/1993, cerca de 40 crianças que dormiam juntas na calçada daquela igreja carioca foram vítimas de uma fuzilaria no meio da madrugada, com seis óbitos no local).

Esses dois crimes hediondos provocaram uma maior estruturação nessas comunidades e mais atenção da sociedade brasileira. A partir da derradeira década do Século XX, a indignação tomou formas de organização. Surgiram entidades voltadas para a população de rua, que – pelos estudos do IPEA –, em 2020, somava mais de 220 mil pessoas no Brasil, “sendo que este é um grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento”.

PARA ALÉM DA COMPAIXÃO

Aplausos para a Justiça Federal, nomeadamente o juiz federal Antônio José de Carvalho Araújo e a juíza federal Aline Soares Lucena Carnaúba, aplausos para o Tribunal de Justiça de Alagoas, nomeadamente o Desembargador Tutmés Ayran. Aplausos para quem compreende, apoia e se engaja nessa corrente que dá um salto para além da caridade (elogiável e importante) que sempre caracterizou a solidariedade para quem não tem teto, exercida antes principalmente por grupos religiosos, como espíritas, católicos – e laicos (alguém aí se lembra da “Sopa do Zarur”?).

No tempo presente, a questão central – o desafio inovador – é levar cidadania para quem mora na rua. Sem desprezar as atitudes filantrópicas, lógico.