Enio Lins

O cinismo e o mundo em crescente risco nuclear

Enio Lins 19 de janeiro de 2024

Em sua edição de 16 de janeiro, a Folha de São Paulo publicou instigante matéria com o título “’Irã cruzou todas [as] linhas vermelhas rumo à bomba atômica’, alerta ONU”. Puxa vida! A morte ensombra o mundo quando se fala em armamento nuclear.

Desde que os Estados Unidos usaram como cobaias Hiroshima e Nagasaki, o mundo vive o terror de acontecer outra matança atômica. Com razão, pois o uso da energia nuclear provou sua supremacia letal frente todas as demais armas.

Nessa reportagem da Folha, a fala entre aspas é do diretor-geral da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), Rafael Grossi, que declarou “a comunidade internacional está assistindo o Irã cruzar as ‘linhas vermelhas’ estabelecidas por seus adversários rumo à fabricação de uma bomba atômica”.

QUEM PODE TER BOMBA NUCLEAR?

Grossi deveria ter ficado vermelho de vergonha ao falar essa frase. Verdadeiras palavras, ao reconhecer – em primeiro lugar – que os tais marcos de proibição foram estabelecidos pelos adversários do país acusado de montar sua primeira bomba.

Deveria a ONU se ruborizar pela vergonhosa posição de silenciar sobre uns e vociferar sobre outros dentre os países com armamento nuclear, apesar de ser óbvio que as Nações Unidas jamais tiveram poder para deter esse processo.

Vergonha, para o dito mundo civilizado, é a dubiedade de posicionamento e a incapacidade de órgãos como a ONU de se postarem de forma independente e crítica, sem vezo político, frente à corrida armamentista de destruição em massa.

Isso posto, é fundamental criticar o cinismo de apontar apenas para um ou outro país fora do sistema de dominação hegemônica como o único responsável pelo mundo viver à beira de uma catástrofe sem precedentes.

VILANIAS UNILATERAIS

Pelas normas das potências hegemônicas que afloraram das cinzas da II Grande Guerra Mundial, “apenas cinco países” poderiam ter armas nucleares: Estados Unidos, Rússia, China, França e Grã-Bretanha. Oquei?

Mas a este quinteto atômico, somaram-se Índia, Paquistão, Israel e Coreia do Norte. O clubinho agora tem nove países aptos a darem fim ao mundo. Quais critérios que a ONU usa para falar em “linhas vermelhas” para A ou B? Os dos inimigos de A ou de B?!

Só para citar dois países com posturas agressivas: se Israel e Coreia do Norte estão com armas atômicas nos coldres, como criticar outras nações por passearem nesse faroeste mundial com ogivas nucleares nas suas cartucheiras?

CINISMO CONIVENTE

Desde o fim da Guerra da Coreia, em 1953, a estrepitosa Coreia do Norte só faz esbravejar, mas não ataca ninguém. Israel, a partir do atentado ao Hotel Rei Davi (em 1946, antes mesmo de sua fundação oficial em 1948), é puro terror contra quem considera inimigo.

E mais: o Irã, profundamente reacionário e obtuso em seu fundamentalismo, depois do poder xiita, só guerreou contra o Iraque, mas tem sido alvo constante de ações terroristas do serviço secreto israelense – sem direito a “autodefesa”.

Correto mesmo, apesar de inviável na prática, é a ONU defender intransigentemente o desarmamento nuclear e desativação de todas as armas de destruição em massa, denunciado todo e qualquer país que investa nesse segmento letal. Um sonho impossível? Sim, nos marcos contemporâneos, mas é um princípio ético, um ícone da paz, que não pode continuar a ser usado como referência de cinismo e politicagem.