Enio Lins
Por que é vital descobrir quem mandou matar Marielle?
Voltemos aqui e agora (e retornaremos depois) à pauta “quem mandou matar Marielle?”, por teimar em considerar esse duplo assassinato, da vereadora carioca e do motorista Anderson, como um fato de enorme importância nacional.
Essa importância singular – um duplo assassinato num país em que o crime organizado produz homicídios incontidos e em todas as unidades da Federação – está no que pode ser uma característica única, e ainda mais perigosa, nesse crime.
Levantam-se muitas teses sobre esse duplo crime de morte, todas a considerar. Mas o que mais chama a atenção é o ululante caráter ideológico do assassinato, motivação que parece evidente por serem irrelevantes as demais hipóteses.
Atentados contra personalidades políticas nunca foram novidade no Brasil, desde facadas que mataram (Pinheiro Machado, em 1915) e que elegeram (vocês sabem quem, em 2018), e tiros que desencadearam uma insurreição (assassinato de João Pessoa, 1930).
Houve até tiroteio com milhares de projéteis trocados e que alvejaram um processo de Impeachment – contra o governador de Alagoas, Muniz Falcão, em 1957 –, e que mataram seu sogro, e líder de seu governo, deputado Humberto Mendes.
Todos esses crimes tiveram motivações concretas, inclusive os tiros deflagrados por João Dantas contra João Pessoa, ato com o componente passional da publicação (responsabilidade de Pessoa) das cartas íntimas entre Dantas e sua amada Anayde.
Da mesma forma, os tiros endereçados contra Carlos Lacerda, em 5 de agosto de 1954, ferindo-o no pé e matando seu apoiador Major Vaz, provocariam a deposição de Getúlio Vargas, evitada apenas pelo suicídio do presidente.
Em todos esses crimes os fatos motivadores foram concretos, políticos, ligados à disputa individual pelo poder. No caso Marielle não existiria disputa pessoal pelo poder, em termos objetivos, ao que se sabe, que pudesse provocar o atentado fatal.
Por que parece ser ideológico o leitmotiv do trucidamento da vereadora? O fato é que os valores, os ideais representados por Marielle foram e seguem sendo usados contra ela por seus autoproclamados inimigos, mesmo depois de morta.
Não se encerraram com a morte, com o fim de sua carreira eleitoral, as manifestações de ódio contra ela, o que reforça a visão de que o motivo de tanto malquerer não estava ligado tão-somente, nem principalmente, a qualquer disputa localizada.
Lésbica, mulher, negra, periférica, favelada, destemida são características que ideologicamente pressionam, provocam, irritam a direita – que constantemente vocifera desejos de morte contra quem considera não ser “gente de bem” e ser de esquerda.
Naqueles idos de março de 2018, a extrema-direita brasileira estava excitadíssima com a chance de sua candidatura puro-fel ser vitoriosa. Lula havia sido lavajatamente condenado em 2ª instância em janeiro, e se esperava sua prisão. Era o êxtase.
“Tá dominado/Tá tudo dominado” – o hit da banda Furação 2000 era o hino da extrema-direita e das milícias, que, embaladas pelas decisões do TRF4, tratavam a Justiça como objeto num baile machista: “Vem gatinha/Dominando/Rebolando até o chão...”
Essa turma tinha a certeza de que tudo estava dominado mesmo. Justiça, lei, ordem, polícia, ética seriam “as cachorras” do Bonde do Crimão. Para a extrema-direita e para as milícias era hora de jair barbarizando, jair fazendo o que desse na telha.
Nesse clima de permissividade supostamente absoluta, em 16 de janeiro de 2018, havia acontecido a inopinada intervenção militar na segurança pública do Rio de Janeiro, decretada por Temer com a aprovação do Congresso. Tava tudo dominado.
Marielle Franco foi sacrificada (juntamente com Anderson) no altar do golpismo nacional como afirmação do poder miliciano e da direita extremada, como prova e exercício da dominação contra a diversidade, a combatividade, a democracia.
Foi a morte de Marielle um spoiler do que as milícias e a direita extremada projetavam para suas inimizades, como expressão prática de que “o poder nasce no cano de uma arma”. É prova da articulação entre o crime organizado carioca e certas autoridades brasileiras.
Por isso, é uma questão da Democracia, do Estado de Direito, chegar a quem mandou matar – por motivos políticos e ideológicos – Marielle e Anderson.
Enio Lins
Sobre
Enio Lins é jornalista profissional, chargista e ilustrador, arquiteto, membro efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas. Foi presidente do DCE da UFAL, diretor do Sindicato dos Jornalistas, vereador por Maceió, secretário de Cultura de Maceió, secretário de Cultura de Alagoas, secretário de Comunicação de Alagoas, presidente do ITEAL (Rádio e TV Educativas) e coordenador editorial da OAM.