Enio Lins

Uma tragédia que não pode ser esquecida, nem maquiada, nem relativizada

Enio Lins 01 de fevereiro de 2023

Hoje completam 111 anos do principal registro do “Quebra”, período de terror sobre os terreiros de Maceió, ápice de uma campanha de ódio contra os cultos de raiz africana por motivação política, e que usou como armas o racismo e o preconceito social & religioso.

Em relação à grandeza
do episódio, os registros de época são escassos, mas os estudos foram ampliados no final do Século XX por intelectuais de porte, além da redobrada atenção da militância afrodescendente. Mas sempre é preciso estudar mais e mais uma ocorrência tão importante como a “Quebra de Xangô”.

Acontecido na Capital alagoana
, teve repercussão nacional em seu tempo, noticiado pela ótica do preconceito religioso, racismo e partidarismo. Em verdade, o povo preto de terreiro pagou o pato numa guerra política entre gansos brancos, sendo violentado pela turba de Fernandes Lima, por conta das ligações de Euclydes Malta com o xangô.

Depoimentos orais
importantes foram se perdendo no oco do mundo, ocultos pela cortina de silêncio montada em torno de um “acontecimento vergonhoso”, como é hábito aqui e alhures, do tipo “não se fala mais nisso”. Assim, antes que o tempo golpeie minha memória, transcrevo aqui um relato do qual sou testemunha auricular.

Invoco a voz de Sinhá Têca
(desculpem o circunflexo irregular, mas...), a quem não conheci, mas ouvi as histórias dela de fontes seguras, as irmãs Ida, Neta e Nia, meninas que ela criou como babá e mulheres jovens que dela cuidaram quando envelheceu e já não podia mais trabalhar. Na época, sem previdência e nem aposentadoria para empregadas domésticas, valia o sentimento de quem empregava.

Sinhá Têca virou agregada
da família de Domitila e Américo. Era católica e foi casada com um Pai de Santo. E repetia para as moças brancas, que havia ajudado a criar, sempre a mesma história traumática: “Nossa Senhora me salvou, pois se tivesse acompanhado meu marido na religião dele, teria sido assassinada como ele foi”.

O marido de Sinhá Têca
, com mais gente de seu terreiro, fazia uma oferenda na então deserta Praia de Pajuçara, e foram cercados pela milícia anti-Xangô. Ele apanhou tanto que morreu ali mesmo, na areia. Não há registro desse crime nos jornais e dados importantes, como o nome da vítima e data do crime, se foram com a viúva, que viveu até os anos 50.

Por sua vez
, as filhas de Domitila e Américo acrescentavam uma lição: “Fernandes Lima foi castigado poque perseguiu os terreiros. Todos os seus filhos enlouqueceram, morreram loucos. Não se deve mexer com Xangô, a vingança vem do alto”.

A família de Domitila e Américo
morava em Mangabeiras, então área rural, onde também se situava a casa de campo de Fernandes Lima (hoje a Cruz Vermelha Brasileira) e conhecia de perto as desventuras familiares do organizador do Quebra.

Fica esse modesto registro
, junto com o apelo para o aprofundamento das pesquisas. O Quebra precisa ser ainda mais estudado, e os cacos das memórias que ainda possam ter sobrevivido precisam ser recolhidos e rejuntados.

Mais pode ser lido em https://www.historiadealagoas.com.br/quebra-dos-terreiros-e-a-queda-dos-maltas.html.

Resumindo o que dizem as imagens: 1) charge publicada em “O Malho”, principal revista brasileira de humor, discrimina a relação do governador de Alagoas, Euclydes Malta com os cultos de raiz africana; 2) fotografia com parte do material saqueado aos terreiros, arrumado para aparecer o nome da milícia agressora; 3) primeira página do Jornal de Alagoas com editorial defendendo a agressão contra a “bruxaria”; 4) ilustração atacando um personagem de pele preta identificado como “Tio Salu”, “feiticeiro” que seria o “chefe” do governador Euclides Malta e que atuaria também na Bahia e Pernambuco