Jurídico com Alberto Fragoso

O pobre e a Justiça

Jurídico com Alberto Fragoso 15 de janeiro de 2023
O pobre e a Justiça
Ilustração - Foto: Ilustração

Segundo o espírito esposado pela Constituição Federal, logo em seu preâmbulo, não é difícil identificar que a intenção inicial foi assegurar a construção de uma sociedade fraterna, igualitária e, certamente, sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida com a solução pacífica dos conflitos.

Dentre os objetivos fundamentais da República, fica enfatizado, muito claramente, o encargo do Estado em promover o bem de todos, sem discriminação por conta de convicções religiosas, políticas, culturais, classe social, ou outra qualquer espécie ou natureza, elevando, por via de consequência, o princípio da isonomia à condição de ferramenta inquestionável de realização plena do significado de Justiça.

No entanto, a atualidade mostra-se com insensibilidade e intensa injustiça social, refletindo, infelizmente, mesmo em determinadas searas onde o humanismo deve sempre prosperar ininterruptamente.

É antigo o chavão: igualdade pressupõe tratar os iguais com igualdade e os desiguais na medida de sua desigualdade, segundo ideia propugnada pelo sempre lembrado jurista brasileiro Ruy Barbosa.

Esta concepção é fruto intelectual dos efervescentes tempos das Revoluções Burguesas, entre os séculos XVI e XVIII, notadamente da Revolução Francesa. Partindo-se dos preceitos ali construídos, as sociedades organizadas subsequentes acabaram adotando a Igualdade como pressuposto essencial de constituição de qualquer Ordem legitimamente instituída, afastando de vez a acepção desleal que se presenciava na estrutura do Estado Absolutista.

A isonomia, como insculpida no texto constitucional, garante que todos os cidadãos sejam tratados de modo idêntico como determinado pela lei. Portanto, não há Justiça, imune à aplicação do Direito com a observância imprescindível da igualdade. A repercussão disto desdobra-se em consolidar, efetivamente, o exercício dos direitos sociais e individuais, sem margem para tratamentos abusivos, arbitrários e incompatíveis com a finalidade inserta nos mandamentos constitucionais.

Para tanto, a legislação, em vigor, concede o direito de qualquer indivíduo de provocar a Tutela Jurisdicional (propor uma demanda) para solução de litígios, sem dúvidas. Neste sentido, o art. 5º, inciso XXXV, da CF, define que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. O texto não faz referência à qualidade, condição ou estado de excepcionalidade para que tal direito seja albergado integralmente, conferindo, desta sorte, os caracteres essenciais para sua consagração indiscutível como direito fundamental do cidadão.

O Brasil é, historicamente, um país de extrema desigualdade social e econômica. E isto é fato. No entanto, esta diferenciação é, de certa maneira, compensada juridicamente, fazendo como todos tenham tratamento equivalente e isonômico na forma da lei. Todos são iguais em direitos e deveres, nos termos da Constituição, e, com base nestes contornos, o Poder Judiciário deve atuar, assegurando, por sua vez, o cidadão o acesso irrestrito à Justiça, como forma de proporcionar a harmonia e a pacificação coletiva frente às demandas sociais.

Neste panorama, vez ou outra, aqueles que necessitam da prestação jurisdicional se deparam com exigências extralegais que dificultam sobremaneira o ingresso em juízo, contrariando a obrigatoriedade do Estado na prestação de assistência jurídica gratuita e integral aos menos favorecidos financeiramente.

A garantia é, de fato, assegurada pelo art. 98 e seguintes do Código de Processo Civil. Por seus termos, todo aquele que não dispor de recursos para custear as despesas de um processo e de honorários advocatícios contará com a gratuidade judiciária para socorrer, proteger ou efetivar direito postulado, confirmando a veneração aos preceitos constitucionais de isonomia. A desigualdade que se apresenta pela insuficiência financeira (elemento discriminador) redunda no caráter desigual recepcionado pela lei para compensar o predicado peculiar do indivíduo, pelo seu estado de miserabilidade ou simplesmente por sua pobre.

A este respeito, em célebre e brilhante decisão proferida pelo Desembargador José Luiz Palma Bisson, do Eg. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (Agravo de Instrumento nº. 0084039-57.2005.8.26.0000), foi concedida a gratuidade judiciária a menor de idade pobre que, ao perder seu pai em um atropelamento, requereu judicialmente uma pensão de um salário mínimo e indenização por danos morais ao causador do acidente, negada em primeira instância por não comprovar o estado de necessidade e não estar o autor representado por defensor público.

Eis o teor do voto proferido:

É o relatório. Que sorte a sua, menino, depois do azar de perder o pai e ter sido vitimado por um filho de coração duro - ou sem ele -, com o indeferimento da gratuidade que você perseguia. Um dedo de sorte apenas, é verdade, mas de sorte rara, que a loteria do distribuidor, perversa por natureza, não costuma proporcionar. Fez caber a mim, com efeito, filho de marceneiro como você, a missão de reavaliar a sua fortuna.

Aquela para mim maior, aliás, pelo meu pai - por Deus ainda vivente e trabalhador - legada, olha-me agora. É uma plaina manual feita por ele em paubrasil, e que, aparentemente enfeitando o meu gabinete de trabalho, a rigor diuturnamente avisa quem sou, de onde vim e com que cuidado extremo, cuidado de artesão marceneiro, devo tratar as pessoas que me vêm a julgamento disfarçados de autos processuais, tantos são os que nestes vêem apenas papel repetido. É uma plaina que faz lembrar, sobretudo, meus caros dias de menino, em que trabalhei com meu pai e tantos outros marceneiros como ele, derretendo cola coqueiro - que nem existe mais - num velho fogão a gravetos que nunca faltavam na oficina de marcenaria em que cresci; fogão cheiroso da queima da madeira e do pão com manteiga, ali tostado no paralelo da faina menina.

Desde esses dias, que você menino desafortunadamente não terá, eu hauri a certeza de que os marceneiros não são ricos não, de dinheiro ao menos. São os marceneiros nesta Terra até hoje, menino saiba, como aquele José, pai do menino Deus, que até o julgador singular deveria saber quem é.

O seu pai, menino, desses marceneiros era. Foi atropelado na volta a pé do trabalho, o que, nesses dias em que qualquer um é motorizado, já é sinal de pobreza bastante. E se tornava para descansar em casa posta no Conjunto Habitacional Monte Castelo, no castelo somente em nome habitava, sinal de pobreza exuberante.

Claro como a luz, igualmente, é o fato de que você, menino, no pedir pensão de apenas um salário mínimo, pede não mais que para comer. Logo, para quem quer e consegue ver nas aplainadas entrelinhas da sua vida, o que você nela tem de sobra, menino, é a fome não saciada dos pobres.

Por conseguinte um deles é, e não deixa de sê-lo, saiba mais uma vez, nem por estar contando com defensor particular. O ser filho de marceneiro me ensinou inclusive a não ver nesse detalhe um sinal de riqueza do cliente; antes e ao revés a nele divisar um gesto de pureza do causídico. Tantas, deveras, foram as causas pobres que patrocinei quando advogava, em troca quase sempre de nada, ou, em certa feita, como me lembro com a boca cheia d'água, de um prato de alvas balas de coco, verba honorária em riqueza jamais superada pelo lúdico e inesquecível prazer que me proporcionou.

Ademais, onde está escrito que pobre que se preza deve procurar somente os advogados dos pobres para defendê-lo? Quiçá no livro grosso dos preconceitos... 
Enfim, menino, tudo isso é para dizer que você merece sim a gratuidade, em razão da pobreza que, no seu caso, grita a plenos pulmões para quem quer e consegue ouvir.

Fica este seu agravo de instrumento então provido; mantida fica, agora com ares de definitiva, a antecipação da tutela recursal.

É como marceneiro que voto.

JOSÉ LUIZ PALMA BISSON - Relator Sorteado


Com certeza, a pobreza por si só já é um fardo bastante pesado para aqueles de poucos recursos. As adversidades corriqueiras da vida é, por demais, suficientes para que essas pessoas paguem, por toda a sua existência com a má sorte dos infortunados. Neste país de tantas diferenças e paradoxos, a dádiva de acomodar-se sob um teto, de proteger-se do sol e da chuva, de gozar momentos sociais de lazer, de ser privilegiado sempre com comida na mesa, e de ter, enfim, uma vida digna é reservada à exceção, lamentavelmente.

Portanto, mais uma vez cabe ao Judiciário, como guardião da Constituição e das leis, ação atuante e eficaz na busca pela felicidade e do bem comum. A ameaça é maior, sem dúvidas, quando o aplicador do Direito não alcança a percepção da excepcionalidade imprimida no caso concreto, desembocando por ceifar terminantemente os signos do bom senso, igualdade e justiça.