Enio Lins
Golpismo sistêmico brasileiro
O Supremo Tribunal Federal, através do Ministro Alexandre de Moraes, tomou uma decisão vital e histórica para assegurar a continuidade democrática no Brasil, ao determinar busca e apreensão sobre articuladores/divulgadores de um golpe de Estado. Houve quem se abalasse com isso e até exigisse explicações para tamanha “afronta a tantos homens de bem”. Bom, explicação ou desenho?
A história do Brasil é uma história de golpes, a começar pela Independência, quando a corte portuguesa na colônia pulou na frente do povo para se separar mantendo-se aboletada nos dois tronos ao mesmo tempo. Pedro I, já imperador do Brasil, golpeou a Assembleia Geral Constituinte, em 1823, concentrando todo poder em si mesmo, e depois partiu para Portugal onde se apossou da coroa lusitana. E, em solo brasileiro, a mesma família real deu outro golpe, em 1840: coroou Pedro II aos 15 anos, quando a Constituição estipulava 18 anos para tal.
A Proclamação da República é tida como golpe e daí vem a sequência: Deodoro, na presidência, tentou um golpe em novembro de 1891, não deu certo e renunciou em seguida, sob tentativa de golpe da Marinha (Primeira Revolta da Armada). Floriano, o vice, golpeou para assumir, pois a Carta Magna estabelecia novas eleições, consolidou o regime republicano com mão de ferro, inclusive derrotando a Segunda Revolta da Armada, mas recusou o golpe que seus admiradores estavam organizando, em 1894, para mantê-lo no posto. Peixoto garantiu a posse de seu sucessor, Prudente de Moraes, e se retirou da vida pública.
Na República Velha, entre 1889 e 1930, o Brasil viveu em Estado de Sítio, na prática, por quatro anos, de 1922 a 1926, num golpe dado pelo presidente Arthur Bernardes. E ainda explodiram: a Revolta Tenentista de 1914, a Rebelião dos 18 do Forte de Copacabana (1922), e a Coluna Prestes/Miguel Costa (1925/1927) – todos visando romper a ordem constitucional vigente. Não incluo aqui a Revolta da Vacina (1904) e a Revolta da Chibata (1910), duas tragédias brasileiras com motivações específicas.
A Revolução de 30, sob a liderança de Getúlio Vargas, com apoio militar, rompe a ordem constituída. Em 1935 foi a vez dos comunistas tentarem também, sem sucesso. Em 1937 Getúlio decreta o ditatorial Estado Novo, liquidando as esperanças de reestruturação democrática. Em 1938 os Integralistas (fascistas brasileiros) arriscam seu golpe e cercaram o palácio presidencial do Catete, mas são derrotados. Após a vitória aliada na II Guerra Mundial, em 1945, Getúlio Vargas é derrubado por mais um golpe de estado.
O voto democrático elege Dutra em 1945 e devolve Vargas ao poder em 1950. Um ano antes de terminar o mandato, Vargas, na noite em que soube que seria deposto por mais um golpe militar, suicida-se em 24 de agosto de 1954. A reação popular fez com que os golpistas recuassem. Juscelino Kubitschek é eleito presidente em 1955. Antes de tomar posse é vítima de uma tentativa de golpe, derrotada por um contragolpe militar comandado pelo General Lott, que, em 11 de novembro de 1955, depôs o presidente interino, Carlos Luz, e manteve o país em Estado de Sítio até a posse de JK, em 31 de janeiro de 1956.
Juscelino Kubitschek, o risonho “presidente bossa-nova”, enfrentou em seu mandato mais duas tentativas de golpe militar: Jacareacanga, em 1956, e Aragarças, em 1959, mas em ambas, tropas legalistas cercaram os golpistas e os renderam. JK conseguiu concluir seu mandato em 1960.
Jânio Quadros, eleito em 1960, tentou um autogolpe em 25 da agosto de 1961, renunciando para ser reconduzido com poderes ditatoriais. Não funcionou. E os militares ameaçaram com mais um golpe se a constituição fosse cumprida e o vice assumisse. Jango assumiu depois de muita tensão, com um acordo parlamentarista que vigorou até 1963, e foi derrubado pelo golpe militar em 1º de abril de 1964.
A Ditadura Militar ocupou o Brasil de abril de 1964 a janeiro de 1985, com dois golpes dentro do golpe: a edição do AI-5 em 13 de dezembro de 1968, e o impedimento da posse do vice Pedro Aleixo (por ser civil) quando do derrame do general-presidente Costa e Silva, em 1º de setembro de 1969. Oito anos depois, o general-presidente Geisel derrotou uma tentativa de golpe no nascedouro, demitindo o seu ministro do Exército, o general golpista Sylvio Frota, em 12 de outubro de 1977.
De janeiro de 1985 até hoje, enfim, são 37 anos de Estado Democrático de Direito, o período mais longo sem golpes de Estado no Brasil (desconsiderando os dois impeachments), e isso é um patrimônio a ser respeitado. O golpismo sistêmico brasileiro, aqui resumido desde 1822, é motivo mais do que suficiente para aplaudir entusiasticamente a decisão do STF. Golpe, no Brasil, não pode ser tratado como brincadeira de empresários tchutchucas.
Cena típica na Ditadura Militar (1964/1985) colhida pelo repórter fotográfico Evandro Teixeira, em 1964, e disponível no site iPhoto Channel
Enio Lins
Sobre
Enio Lins é jornalista profissional, chargista e ilustrador, arquiteto, membro efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas. Foi presidente do DCE da UFAL, diretor do Sindicato dos Jornalistas, vereador por Maceió, secretário de Cultura de Maceió, secretário de Cultura de Alagoas, secretário de Comunicação de Alagoas, presidente do ITEAL (Rádio e TV Educativas) e coordenador editorial da OAM.