Enio Lins
ENVENENANDO PELA FÉ
Dona Micheque expeliu um discurso mais preconceituoso que o de costume, com maldade no coração e marketing na mente. A primeira-dona mirou, para alcançar um punhado de votos, o segmento racista de parte do eleitorado que se volta contra a matriz religiosa africana, o setor mais vulnerável entre as muitas fés brasileiras.
O primeiro ataque desta série foi perpetrado num domingo, 7 de agosto, quando em culto eleitoreiro, ela declarou que o Palácio do Planalto “era consagrado ao Demônio” e seu maridão, esse anjo caído do céu por descuido, seria o exorcista de plantão. E, por conta isso, era melhor jair ficando de vez na cadeira presidencial.
Repetiu, a senhorinha em questão, a latomia usada, em 1992, contra o então ocupante do Planalto, Fernando Collor. A mídia, há 30 anos, ficou recheada de reportagens “denunciando” a presença de mães e pais de santo nas dependências presidenciais para, “através de despachos e mandingas, impedir o prosseguimento do impeachment”.
A esposa do zero-zero, um dia depois, 8 de agosto, voltou ao ataque, postando o mimimi “isso pode, né? Eu falar de Deus não”, sobre uma foto de Lula num banho cerimonial de pipocas durante evento na Assembleia Legislativa da Bahia. O chororô da dama visava ajustar melhor sua pontaria à pessoa eleitoralmente mais bem posicionada contra seu marido.
Ela mira numa ferida nacional, pois continua forte o estigma contra os cultos afro-brasileiros, e uma parcela significativa de nosso povo – mestiço dos pés à cabeça – repudia nossas ululantes raízes africanas (e indígenas) e sonha em ver a negritude, em quaisquer percentuais de preto na pele, devolvida e confinada ao gueto social que é a senzala contemporânea.
Em 1912, essa tática foi usada em Alagoas, quando uma corrente política, com objetivos eleitorais e discurso de ódio religioso, promoveu um massacre aos terreiros, violando e matando (relatos de assassinatos ainda eram ouvi dos até os anos 70). O testemunho dessa barbárie está preservado na Coleção Perseverança, exposta no Instituto Histórico.
Há 110 anos, era previsível a quarta eleição de Euclydes Malta para o governo de Alagoas e isso fez explodir o ódio nas elites que a ele se opunham. Branco, culto, rico, Malta era também da elite, mas tão chegado aos terreiros que tinha um codinome: Leba. Destruir esse vínculo popular foi o que motivou o infame “Quebra”.
Manuel da Paz, caboclo e miliciano, com sua “Liga dos Republicanos Combatentes”, executou as atrocidades. Fernandes Lima, caboclo (raro elitista alagoano de pele escura), foi o estratego dessa política criminosa e, por essa via, chegou ao governo em 1918. Após isso, pesados reveses pessoais aconteceram em sua vida e se comentava, nem sempre à boca miúda, que “Fernandes Lima foi castigado por Xangô” – mas aí é tema para outro dia.
Atacar religiões afro-brasileiras ainda faz sucesso numa parte podre do espírito brasileiro. A nossa (maravilhosa) raiz africana segue sendo um nervo exposto que a perversidade branca, ou que se acha branca, insiste em machucar, mantendo vivo por cinco séculos um segregacionismo político-social odiosamente dissimulado.
São Jorge é festejado por pios católicos em prosa e verso, mas esse mesmo santo – com cavalo, dragão e tudo mais – vira coisa demoníaca se decorar algum peji. Iemanjá virou uma branca-de-neve marinha para sobreviver, os cânticos em Iorubá saúdam Jesus, mas nem esse sincretismo religioso amaina a sanha contra a afrodescendência. Na cena da devoção brasileira, desde sempre, as mesmas “boas almas” – intolerantes aos terreiros – são respeitadoras de vertentes não-cristãs como o budismo, lamaísmo, islamismo, judaísmo, teosofismo... Para gente como Dona Micheque, o Diabo veste preto.
Charge na Fon Fon, principal revista de humor brasileira na época, com ampla circulação nacional. Nessa ilustração, publicada em de 23 de março 1912, racista e antixangô, o foco é o governador alagoano (Euclydes Malta, de costas, encoberto com um lençol), acusado de receber proteção mágica de um pai-de-santo negro. Desenho de K. Lixto – nome artístico de Calixto Cordeiro (1877/1957), ilustrador, caricaturista, litógrafo, pintor e professor – um dos maiores chargistas brasileiros de todos os tempos.
Enio Lins
Sobre
Enio Lins é jornalista profissional, chargista e ilustrador, arquiteto, membro efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas. Foi presidente do DCE da UFAL, diretor do Sindicato dos Jornalistas, vereador por Maceió, secretário de Cultura de Maceió, secretário de Cultura de Alagoas, secretário de Comunicação de Alagoas, presidente do ITEAL (Rádio e TV Educativas) e coordenador editorial da OAM.