Jurídico com Alberto Fragoso

Os donos do pedaço e sua inutilidade pública

Jurídico com Alberto Fragoso 22 de junho de 2022
Os donos do pedaço e sua inutilidade pública
Ilustração - Foto: Ilustração

A maioria das grandes cidades brasileiras não está sendo capaz de enfrentar um problema que cresce em índices vertiginosos hoje em dia: a ausência de espaço físico para acomodar a frota de veículos, abragendo, nesta perspectiva, estacionamentos privados e áreas públicas gratuitas ou eventualmente pagas.

A priorização e o incentivo estatal pelos meios de locomoção individual – pondo os transportes coletivos em grau de segunda categoria –, são alguns dos fatores responsáveis pelo enorme inchamento do trânsito e pela criação de “novas classes de profissionais”.

Quem possui automóvel convive diariamente com transtornos que vêm desde a ineficiência de fluxo das vias, passando pelos desgastantes congestionamentos que se estendem por quilômetros a fora, até o local de se estacionar, após exaustivos instantes de tortura. E o tiro de misericórdia é ter que lidar com “gerentes do espaço” que logo que se apressam em notificar o condutor das regras aplicáveis para o uso da zona, sem o mínimo pudor ou respeito alheio, constrangendo inclusive com ameaças subliminares, em flagrante ato de extorsão.

Segundo a legislação civil, os logradouros, ruas e calçadas são enquadradas como bens de uso comum do povo (art. 99, do Código Civil), não podendo ser tolhido o direito do cidadão de usufruir do mesmo livre e desembaraçadamente, observado, em qualquer caso, o eventual interesse coletivo ou circunstâncias especiais, como os casos de segurança nacional. Estes são bens públicos, acessíveis integralmente à população, sem formalidades.

Todavia, esses ditos gerentes, popularmente conhecidos como “flanelinhas”, usurpam o poder de domínio, privativo do Estado, agindo como se donos fossem de áreas públicas e, o pior, com a crença induvidosa de ser realmente proprietários do local. Basta ver, para tanto, as disputas recíprocas que se encerram diuturnamente nos centros urbanos, deixando o cidadão refém desta lastimável antropofagia.

A indignação é geral, notadamente pela forma intimidativa e até mesmo agressiva, como é vista, o que se acentua pela flagrante ilicitude no processo de privatização de espaços que, por sua natureza, não se sujeitam a qualquer restrição de uso, a princípio. Quem nunca se amedrontou com a presença inconveniente dessas pessoas? Quem nunca se viu obrigado a dar algumas moedas em troca de um “vou dar olhadinha aí, meu patrão”? Quem nunca escutou histórias de veículos riscados, arrombados ou com pneus furados por não ter aceito os proprietários o constrangimento de retribuir tal “boa vontade”?

Nesta conjuntura, a conduta pode ser entabulada como extorsão. De acordo com o Código Penal, a extorsão é definida como crime, compreendida em “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter vantagem para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa” (art. 158).

Apesar do conceito acima que casualmente se reveste na hipótese, não é justo restringir os comentários sobre este assunto apenas às circunstâncias. Suas causas devem ser, do maneira idêntica, consideradas. A deficiência e precariedade no setor educacional, alta concentração de riqueza, contexto marginalizador da história brasileira (em razão de cor, sexo e condição social), escassez de postos de trabalho, insuficiência de mão-de-obra qualificada, entre outros, fazem com que aja o deslocamento dos mais carentes a ocupações informais, com pouca complexidade e capacitação funcional, e, sobretudo, à desintegração direta em relação à estrutura social.

Estas pessoas são, sem dúvidas, resultado de um fracassado modo de condução que governo do país estabeleceu ao longo do tempo, que não priorizou investimentos básicos para o desenvolvimento humano e econômico. Os precedentes históricos confirmam esta tese.

Assim, o Estado arcar com sua parcela de culpa, seja pela carência de fiscalização dos bens sob domínio público e repressão desses usurpadores, seja pela falta de políticas públicas palpáveis de inclusão social, principalmente em virtude da marginalização centenária das camadas populares mais inferiores.

A aceitação do pagamento de gorjetas e de retribuições de qualquer título pela guarda de veículos em locais públicos apenas financiam o sistema, mantendo-o sem prazo. Ofertar e criar condições favoráveis para a consolidação da educação com efetiva qualificação profissional e de frentes de trabalho seria, pois, um grande passo para dignidade, socialização e, enfim, para o sossego da população.