Da afetividade para a efetividade

Mães ampliam acesso a direitos das pessoas LGBT

Por Deborah Freire I Fotos: Jonathan Lins | Redação Tribuna Hoje

Um barquinho à deriva. Era assim que a maquiadora Mel Oliveira se sentia antes de conhecer a ONG Mães da Resistência, um grupo de mulheres cujos filhos têm orientações sexuais e identidades de gênero diversas. Se ver como mãe de um adolescente transgênero não binário, hoje com 13 anos de idade, a colocou em um lugar de solidão e de estranhamento.

Os sentimentos passaram por um longo processo de transformação até darem espaço ao entendimento, acolhimento e desejo de assegurar os direitos dele e de todas as pessoas LGBTQIA+. E encontrou respaldo na fala de dezenas de mulheres que enfrentavam, e enfrentam, os mesmos desafios que ela; por isso, se uniram, para fortalecer e acolher umas às outras, e lutar por seus filhos e filhas.

“A minha dificuldade, o meu não entendimento não poderia ser maior do que a dor que ele passaria. O enfrentamento que eu passo é muito menor, porque eu passo por ele, ele passa na pele. Eu decidi que precisava fazer alguma coisa, me movimentar, sem saber como, sem saber por quê, nem quando, nem onde. Mas eu encontrei essas mulheres que formaram a pessoa que eu sou hoje”, enfatiza.

Essas mulheres são as Mães da Resistência, um grupo formado oficialmente em 2021, que surgiu a partir de outra organização, mas se desvinculou e abriu o leque para as diversidades regionais, inserindo as demandas de famílias inicialmente do Nordeste e logo alcançou 18 estados brasileiros, dos quais 14 já possuem coordenação eleita e empossada.

A formalização como Organização da Sociedade Civil ocorreu em Olinda, Pernambuco, e como lembra a presidente do grupo, Gil Carvalho, foi uma “virada de chave”. Garantiu mais pluralidade, autonomia às coordenações estaduais, e o fortalecimento da causa, hoje com a participação de 600 pessoas. Rapidamente, a ONG alcançou reconhecimento nacional e conquistou assento no Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+.

Neste mês de dezembro, atingiram um marco: a realização do 1º Congresso Brasileiro das Mães da Resistência, em Brasília, com a participação de representantes dos grupos estaduais para debates e propostas, junto a integrantes dos ministérios da Saúde, das Mulheres e dos Direitos Humanos e Cidadania e com apoio da Organização das Nações Unidas, através da Unaids, e da Plataforma 4 EAD.

Além da visibilidade nacional e internacional, e de possibilitar que cheguem ao Poder Público as sugestões de políticas públicas voltadas para a população LGBTQIA+, o encontro foi espaço para o intercâmbio de vivências, experiências e fortalecimento.

“Foi a primeira vez que a gente conseguiu juntar mães, lideranças de um movimento de famílias, com a chancela desses ministérios. O peso desse encontro foi discutir política junto com as famílias. Também foi para mostrar que nós somos reais, que estamos juntas e que, se unindo e se organizando, nós podemos, sim, transformar a sociedade. As mães vão ter a certeza de que a gente não está só no campo do afeto. A gente está saindo da afetividade para a efetividade”, pontua Gil Carvalho.

A formalização como Organização da Sociedade Civil ocorreu em Olinda, Pernambuco, e foi uma ''virada de chave''

Iniciativas sociais com atuação direta na causa LGBT são só 3% do total

Uma causa discriminada, envolvida em preconceitos, mas com demandas urgentes como a redução da violência. Esse é o cenário da luta pelos direitos das pessoas LGBTQIA+. Entre esse público, o Brasil registrou uma morte violenta a cada 32 horas no ano passado, segundo dados do Dossiê de Mortes e Violências Contra LGBTI+.

Em contraponto, as iniciativas de investidores sociais ligadas diretamente ao tema representam apenas 3% do total, segundo o Censo Gife 2020, a principal pesquisa sobre investimento social privado no Brasil, que levantou 1.015 ações. O estudo mostrou que a temática da diversidade é tratada pelas instituições geralmente apenas de forma transversal, quando é tratada.

O Mapa das Organizações da Sociedade Civil (OSC) do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra que há 1.426 entidades atuando na defesa de direitos de grupos e minorias, quando o total de OSC registradas no Brasil ultrapassa os 800 mil.

Remando contra essa realidade, a iniciativa de mulheres, mães de pessoas LGBTQIA+, que se reuniram inicialmente para apoiar umas às outras e agora lutam pelos direitos dessa população, caminha para ampliar a visibilidade da causa e assegurar maior proteção, acesso a direitos, acolhimento e respeito aos seus filhos e filhas.

“É uma causa que já é discriminada dentro de casa”, ressalta Mel Oliveira. O grupo Mães da Resistência surge, nesse contexto, para estimular o acolhimento familiar dos filhos e, a partir dele, provocar e fortalecer o ativismo das mulheres.

''A gente precisa realmente levar essa luz e mostrar que nós temos famílias, temos respeito e temos dignidade, e buscamos por espaços, não mais nem menos, mas espaços igualitários, equitativos'', Mel Oliveira

Famílias enfrentam discriminação dentro e fora de casa

Foi o que aconteceu com ela, a partir do entendimento de que tinha um filho transgênero e teria que enfrentar o próprio medo, o preconceito da família e a discriminação de toda a sociedade. “Foi uma luta que eu passei. Eu me divorciei por conta disso. E eu disse não! Eu não posso permitir que nada seja maior do que o amor pelos meus filhos. O amor de mãe é incondicional. Se eu disser que eu não vou aceitá-lo de maneira X ou Y, eu estou impondo condições. Não existe isso. A gente precisa realmente levar essa luz e mostrar que nós temos famílias, temos respeito e temos dignidade, e buscamos por espaços, não mais nem menos, mas espaços igualitários, equitativos”, destaca.

O processo de desconstrução foi semelhante para a advogada Ana Lúcia Gomes, mãe do jovem Leonardo Gomes, de 20 anos. Ela procurou o Mães da Resistência para obter apoio e receber orientação. Hoje é uma das mulheres mais ativas da coordenação do grupo no estado de Alagoas.

“Eu me achava muito desconstruída, mas quando aconteceu comigo, de ter um filho gay, foi quando apareceu o preconceito que estava, de certa forma, guardado. Eu sou mãe solo, então precisava de uma rede de apoio, de pessoas que também estavam vivenciando aquilo, vivenciando a questão de saber lidar com uma nova pessoa. Porque, até então, ele não conseguia ser ele mesmo, tinha que estar se escondendo para poder mostrar uma coisa para a sociedade e até para mim que ele realmente não era. Eu precisava ter esse apoio para saber lidar com meu filho, para saber apoiá-lo. O grupo me ajudou a desconstruir tudo isso”, reforça.

O resultado da união de mães que querem mudar sua forma de maternar é uma transformação social que, por meio de um trabalho de formiguinha, chega cada dia mais longe e conquista mais espaços na sociedade.

Por meio da iniciativa do grupo, o estado de Pernambuco, por exemplo, já oficializou mais de 150 casamentos homoafetivos. O estado do Ceará realizou mais de 300 retificações de nome e gênero nos últimos dois anos. Em Alagoas, durante ação realizada no início deste ano em parceria com o Tribunal de Justiça e o Centro Universitário de Maceió, foram retificados os nomes de 35 pessoas, dentre as quais está Sam Alex Figueiredo, de 18 anos.

No evento, ele era um dos poucos acompanhados pela mãe. A artesã Andréia Karina lembra que o momento a fez compreender ainda mais a importância de acolher o filho e, não só ele, mas toda a comunidade LGBTQIA+. “Ouvimos vários relatos de pessoas que estavam lá, olhavam para a gente e diziam ‘como eu queria a minha mãe aqui’. Eu estava ali pelo Sam, mas eu também me sentia um pouquinho mãe daquelas pessoas que estavam ali, tão sozinhas, e choravam, abraçavam a gente e diziam ‘que bom que vocês estão aqui’. Naquele momento, eu tive mais que a certeza de estar no lugar certo”, relata.

Foto: Jonathan Lins

Sem arrecadação fixa, OSC conta com trabalho voluntário e parcerias públicas e privadas

Mulheres trans em situação de vulnerabilidade, muitas delas vivendo da prostituição, compõem a maior parte do público atendido pelo Projeto Acolhe, uma iniciativa da coordenação do Mães da Resistência em Alagoas, que garante atendimento socioassistencial, jurídico e de saúde a cerca de 50 pessoas.

Sempre que pode, a OSC também distribui cestas básicas, kits de higiene pessoal e outros itens de necessidade básica, tudo feito com o trabalho de profissionais voluntários ou por meio de parcerias com empresas e órgãos públicos, devido à baixa arrecadação financeira.

A dificuldade é enfrentada não só em Alagoas, mas nacionalmente. A instituição nunca recebeu recursos de emendas parlamentares, apesar de ter CNPJ e estar apta para participar de editais públicos, e por isso conta apenas com as doações das próprias integrantes.

Atualmente, a coordenação do Ceará realiza uma campanha de doação para arrecadar recursos para a aquisição da sede própria. Em Alagoas, as integrantes tentam obter parcerias para emplacar uma campanha de conscientização sobre os direitos da população LGBTQIA+ nos meios de comunicação.

As metas esbarram na questão financeira. Mas têm sido dribladas com o trabalho das integrantes. “Para a gente poder ter mais ações, atender mais pessoas, atingir mais mães, é importante ter acesso a recursos. Hoje, a gente procura as pessoas que têm um ativismo na causa e conta, por exemplo, com as redes de apoio. Algumas de nós têm mais condição financeira ou conhecem mais pessoas e dizem ‘olha, estou precisando da doação disso’, e é assim que a gente vai trabalhando”, explica a coordenadora estadual do Mães da Resistência em Alagoas, Edsângela Palmeira.

Por meio da articulação do grupo, o Estado se estrutura para abrir o primeiro ambulatório trans infanto-juvenil, que ficará no Hospital da Criança, em Maceió. O processo de discussão da implantação começou em setembro do ano passado, e conta com o apoio do Ministério Público Estadual, Tribunal de Justiça e Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente, para ter o devido respaldo legal.

“Foi uma reivindicação de nossas mães que sentiram essa necessidade, porque nós temos crianças e adolescentes trans, mas as mães não encontram pessoas especializadas para atender suas crianças e seus adolescentes dentro da rede de saúde, mesmo que seja privada. Nós temos no grupo oito crianças e adolescentes trans, e onde é que essas mães vão poder procurar orientações como, por exemplo, sobre o bloqueio hormonal? E aí a gente buscou a Secretaria de Saúde, e levou a reivindicação”, conta Edsângela. A perspectiva é que o espaço esteja em funcionamento ainda este ano.

“No ‘Mães’, achei um lugar onde as pessoas passam o mesmo que eu”

“Cheguei no grupo através de uma amiga, que percebeu a necessidade quando viu o início do processo de transição do Sam. Eu, como mãe, me senti completamente sufocada no meio de tanta informação. Era muita coisa que eu precisava aprender. Eu procurei apoio e recebi acolhimento em todos os sentidos. Achei um lugar onde as pessoas passam pelas mesmas dificuldades, pelas mesmas preocupações, os mesmos medos que eu”.

O depoimento é de Andreia Karina, mãe do Sam, um jovem de 18 anos, transgênero, que vive hoje a alegria de ter em casa o respeito e carinho que tantas crianças, jovens e adultos LGBTQIA+ ainda sonham em ter. Integrar o grupo Mães da Resistência foi um importante aliado para o bem-estar da família. “Eu vejo a minha mãe mais confiante. Ela tem agora o apoio de pessoas que passam pela mesma situação que ela, e essa rede é muito importante”, ressalta.

A rede criada pelas mães busca romper a lógica de exclusão que começa já dentro de casa. A coordenadora da entidade em Alagoas, Edsângela Palmeira, que também é psicóloga, explica que a discriminação parte da dificuldade em aceitar aquilo que foge ao padrão.


Há casos de mulheres que foram recebidas no grupo quando estavam em um quadro de depressão por não entenderem, por exemplo, a transgeneridade dos filhos. O processo de desconstrução passa por informação, diálogo e até mesmo atendimento médico e psicológico.

“A sociedade tem uma cultura muito presente que é a da heterocisnormatividade. Existe o padrão que é ser hétero, então se eu fujo dessa caixinha que é colocada pela sociedade, eu me torno diferente, e o diferente às vezes assusta. A gente precisa entender que nossos filhos são iguais a todo mundo. É um processo de desconstrução, de se informar bastante”, reforça a coordenadora.

Nas rodas de conversas promovidas pela ONG, as pessoas conhecem as histórias de vida de cada um, e conseguem enxergar além do próprio preconceito até entender suas responsabilidades como seres políticos e sociais.

Histórias como a da Mel Oliveira, que precisou compreender a transgeneridade de sua criança, quando ela tinha por volta dos seis anos de idade, e reuniu forças para se levantar como mãe de uma pessoa trans e encontrar outras mulheres que passam pelo mesmo desafio.

“Ninguém nasce aos 18 anos, aos 25, ou aos 30, ou aos 60. E a sua sexualidade e a sua identidade de gênero também não acontecem lá. Mas na infância, essa situação é muito perseguida e demonizada. Eu me sentia muito sozinha, e no grupo eu descobri que não era sozinha. Fazer parte da rede de mães mudou meu maternar, meu senso político e como eu enxergo o meu dever na sociedade. A minha mãe sempre falava ‘o plantio é opcional, a colheita é obrigatória’. Hoje eu vejo que o plantio também é obrigatório, porque se eu quero um mundo melhor, eu posso não viver o suficiente pra ver, mas eu preciso fazer alguma coisa hoje”.

O grupo Mães da Resistência está no Instagram. Para conhecer mais sobre a luta dessas mulheres e colaborar com a causa da população LGBTQIA+, acesse @maesdaresistencia