ALAGOAS AINDA CONVIVE COM FANTASMA DA INTOLERÂNCIA RELIGIOSA

Após 111 anos do Quebra de Xangô (1912), um dos maiores registros de intolerância religiosa no Brasil, ainda há resquícios desse triste legado; de 2022 até maio de 2023, foram 24 casos de violência contra adeptos de matriz africana e católicos em Alagoas

Por Lucas França e Wellington Santos / Revisão e edição: Bruno Martins | Redação
(Foto: Reprodução / Adailson Calheiros)

Entre os dias 1º e 2 de fevereiro, Alagoas lembrou os 111 anos de um dos mais emblemáticos episódios da história do Estado que ficou conhecido como “O Quebra de Xangô”, em 1912. O movimento foi organizado por integrantes da Liga dos Republicanos Combatentes, em Maceió, e foi responsável por um dos piores casos de violência e intolerância religiosa contra terreiros e praticantes de crenças de matriz africana. O episódio teve conotação ainda de preconceito contra os negros alagoanos e abuso de autoridade, figurando, segundo os historiadores, como caso gravíssimo de discriminação explícita ocorrida no Brasil. Também denominado “Operação Xangô”, o movimento tinha como seu principal objetivo o viés político, que significava a queda do então governador do Estado, Euclides Vieira Malta, que já administrava Alagoas por 12 anos ininterruptos e era adepto da religião de matriz africana.

Não raro, a reboque do que significou o Quebra para a história, esse episódio sempre que lembrado suscita os mais diversos questionamentos que pululam o universo imaginário e o inconsciente das pessoas que dão prosseguimento às crenças religiosas de matriz africana e até mesmo dos historiadores que ouviram relatos dos contemporâneos do episódio. Um exemplo disso é o mito que ficou de uma personagem que para muitos é a personificação de um mártir do Quebra de 1912 – Tia Marcelina, que, segundo as informações colhidas na imprensa da época e obras literárias que versam sobre o assunto, seria a mais famosa yalorixá dessa época. Do “corpo” intelectual do Quebra, faziam parte políticos locais, como Clodoaldo da Fonseca, então candidato a governador; Fernandes Lima, seu vice; e Manuel da Paz, um sargento militar responsável pela liderança da Liga e da devassa aos terreiros alagoanos.

O ataque coordenado pela Liga dos Republicanos Combatentes, comandado por Paz, tem outro importante componente para análise: o movimento foi muito profissional na ação, isso porque o sargento era integrante do Exército e serviu no batalhão da Guerra de Canudos (BA) e reforça a versão dos historiadores no viés político como o principal motivo para a destruição dos terreiros. “Foi uma perseguição ao governador Euclides Malta, que tinha ligação com os terreiros e havia recebido até o título de papa do xangô alagoano. O interessante é que Euclides era um fervoroso católico”, conta o médico, historiador e ex-vice-presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas (IHGAL) Fernando Gomes, autor do livro “Legba”, que aborda a “Operação Quebra-Quebra da Soberania”, que vitimou o governo de Euclides Vieira Malta, coroado o papa do xangô alagoano, o deus Legba. A oposição conseguiu destituí-lo e, com isso, a Liga dos Republicanos Combatentes – uma associação civil miliciana – junto com o apoio o popular - conseguiu destruir com fúria os terreiros.

TIA MARCELINA, A PRETA ANCESTRAL

Ilustração mostra Tia Marcelina sendo agredida em seu terreiro (Foto: Reprodução / Adailson Calheiros)

No episódio de 1912, nenhuma história é mais emblemática que o da africana Tia Marcelina, fundadora do candomblé em Alagoas e a mais famosa mãe de santo do Estado à época, e a quem é atribuída uma frase que vive no imaginário de adeptos e simpatizantes da religião de matriz africana. A famosa yalorixá teve seu terreiro invadido por um grupo miliciano. Ela resistiu à invasão de seu terreiro e recebeu golpes de sabre enquanto, banhada de sangue, bradava: “bate moleque, quebra braço, quebra perna, tira sangue, mas não tira saber!”, gemendo para Xangô a cada chute. Tia Marcelina e outros adeptos exerciam livremente a prática do seu ofício na pacata e burguesa Maceió, pelos idos de 1910.

O famoso xangô da tia Marcelina ficava situado num baixio à margem dos trilhos da Great Western, quase em frente à rua da Aroeira, hoje onde fica a Praça Sinimbu, habitada por mascates e bicheiros. O Quebra de 1912 se estendeu a várias cidades próximas de Maceió. Os objetos que não eram queimados na fogueira pública eram levados para a sede da Liga e colocados em exposição no IHGAL onde se encontram até os dias atuais. A influência da cultura afrodescendente oriunda de negros escravos que vieram para o Brasil trouxe enormes bagagens culturais, como a arte, gastronomia e a religião, além de usos e costumes com linguajar próprio, ritmos e vozes. E Alagoas não foi diferente. E dessa forma, há uma singularidade que transformou a Terra de Zumbi dos Palmares como ponto inicial para a disseminação da cultura afro em uma de suas vertentes para outros estados do país.

111 ANOS DEPOIS, RESQUÍCIOS DO QUEBRA SÃO REAIS COM 24 CASOS REGISTRADOS

Os resquícios de 1912 em Alagoas são reais, estão presentes no cotidiano, em pleno 2023, em razão das crenças e hábitos religiosos diferentes. É o que revela a Ordem dos Advogados do Brasil - Seccional Alagoas (OAB/AL), por meio da Comissão de Promoção de Igualdade Racial. Somente este ano já são sete casos confirmados.

“Não temos os dados consolidados do ano anterior, infelizmente, porém em 2022 já chegaram para nós sete casos. Esse número, infelizmente, ainda é subnotificado, visto que em todas as visitas que fazemos às casas de religião de matriz africana sempre há relatos de algum tipo de discriminação religiosa que aconteceu com algum de seus membros”, denuncia ao Tribuna Hoje Pedro Gomes, secretário-adjunto da Comissão de Promoção de Igualdade Racial da instituição.

Liga dos Republicanos Combatentes (Foto: Reprodução / Adailson Calheiros)

Segundo Gomes, alguns em maior frequência e outros casos isolados. “Mas, infelizmente, praticamente em todas as casas de santo existentes em Maceió há relatos de algum tipo de perseguição religiosa sofrida por seus membros”, afirma o secretário. De acordo com ele, os casos registrados este ano e que são de conhecimento da OAB/AL ocorreram tanto na capital quanto em outras cidades do interior.

As denúncias de intolerância religiosa não param por aí. Elas são feitas também por Mãe Aliete Miguel dos Santos, presidente da Federação Zeladora das Religiões Tradicionais Afro-Brasileiras em Alagoas (Fretab/AL). Segundo ela, somente em 2022 são 10 casos registrados na entidade. Somando-se os casos da OAB com os da Fretab, temos 17 casos relacionados. Incluindo nessa relação os ocorridos até maio de 2023, são 24 casos em menos de um ano e meio em Alagoas

“Toda semana recebemos casos de intolerância religiosa. Hoje mesmo [quarta-feira, 26 de outubro de 2022] recebemos o décimo caso. Esses são os que chegam até a federação dos nossos associados. E não estou citando os casos de preconceito individual, apenas os das casas e terreiros. Grande maioria destes casos de intolerância ou preconceito parte de outros grupos religiosos”, aponta a presidente da Fretab.

'Toda semana recebemos casos de intolerância religiosa. Hoje mesmo recebemos o 10º caso no ano'

Responsável pela Promotoria de Direitos Humanos do Ministério Público Estadual, promotor Flávio Gomes destaca o papel da instituição no combate à intolerância (Foto: Sandro Lima / Arquivo)


MEDO, FALTA DE SEGURANÇA E SUBNOTIFICAÇÃO, FATORES QUE INIBEM DADOS MAIS PRECISOS DO CRIME

Ainda segundo Mãe Aliete, este número não condiz com a realidade. “Há muita quantificação porque os responsáveis e membros desses locais que são atacados acabam não prosseguindo com a denúncia com medo de represálias. Temos órgãos de proteção, mas não há garantias dessa proteção no dia a dia”, diz Aliete. Ele lembra da Delegacia Especial dos Crimes contra Vulneráveis Yalorixá Tia Marcelina, recém-inaugurada na capital de Alagoas, e que já atende grupos de vulneráveis e vítimas de intolerância, e funciona especificamente em Maceió. “Mas como as casas no interior serão protegidas posteriormente às denúncias?”, interroga.

A presidente da Fretab cita ainda que em muitos casos é difícil juntar provas que de fato provem que tenha ocorrido intolerância, pois as possíveis testemunhas temem por sua integridade e acabam não querendo se expor. “Isso dificulta o prosseguimento da denúncia, porque seria apenas a fala da vítima sem provas. Então, de todo modo, o processo seria arquivado, como já aconteceu por várias vezes. Por isso que nós, enquanto Federação Zeladora, prestamos este apoio de orientar e conversar com as mães e pais de santo que sofreram as agressões em seu local de adoração para antes de formalizar denúncias conseguir as provas”, explica Aliete.

Veja a primeira parte da entrevista na íntegra.


“Analisamos casos por caso. Se der para resolver sem precisar ir às vias de fato, ou seja, à Justiça, é melhor, para que não se torne algo tão desgastante. Orientamos e também pedimos respeito às demais pessoas. Geralmente pedimos para conhecer a religião do outro e respeitar. Não são apenas as religiões de matriz africana que sofrem ataques, as demais religiões também sofrem de alguma forma. As pessoas não querem entender a livre escolha do outro e isso se intensificou nos últimos anos”, ressalta a presidente da Fretab.

Questionada sobre os casos enviados pela OAB à reportagem, mãe Aliete afirma que os sete registrados na Ordem dos Advogados não são os mesmos da Federação. “Temos conhecimento desses registros. Mas como disse, nem todos chegam até nós. O que pontuei são dos associados. Se formos juntar seriam, em média, 17 casos no Estado. Ressalto casos que chamam atenção para nós, mas que não foram de conhecimento da mídia. Casos que podem ser resolvidos no diálogo e casos que a Justiça tenha que intervir. Toda semana surgem relatos”, revela.

Ainda segundo Aliete, muitos desses casos não são elucidados e acabam ficando nos arquivos. “Isso acontece por falta de provas e porque realmente nem a Justiça ainda sabe direito como proceder. Orientamos para a promoção de cursos aos profissionais destes locais especializados. São poucos ainda, mas vemos que estão ajudando”, completa a presidente da Fretab.

Nesse bate papo exclusivo com a reportagem, Mãe Aliete fala do trabalho da Federação, da atuação dos órgãos e de casos de intolerância ocorridos após o Quebra de Xangô.

Confira a segunda parte da entrevista com Mãe Aliete.


VIZINHOS E CONFUSÕES CONSTANTES REACENDEM PRECONCEITO

Pedro Gomes explica que, por conta da segurança dos denunciantes, nem sempre é possível divulgar ou comentar diretamente cada caso especificamente. “Em função até da segurança dos denunciantes, nem sempre conseguimos comentar diretamente cada caso específico, mas o relato mais comum é de vizinhos que, por não aceitarem a convivência pacífica entre sua residência e aquela casa de santo (que, na maioria das vezes, inclusive está lá há mais tempo que a vizinhança), procuram criar confusões constantes, seja fazendo algum tipo de comportamento hostil para com os frequentadores do local, seja chamando a polícia durante os cultos religiosos, sob a alegação de perturbação de sossego”, comenta o secretário-adjunto da Comissão de Promoção de Igualdade Racial da OAB.

Segundo Gomes, a comissão recebe as demandas de diversas maneiras. Seja pelas redes sociais - de cada membro, da Ordem, por telefone ou diretamente na sede da OAB.

“Quando a demanda se apresenta, nós ouvimos a vítima e reduzimos a termo. Caso já tenha advogado constituído, nós acompanhamos os procedimentos e diligências, auxiliando e utilizando a força institucional da OAB para encaminhar os procedimentos necessários”, diz Gomes.

“Após a formalização da denúncia e do correto encaminhamento da vítima, buscamos fazer junto aos órgãos competentes uma interlocução para que o caso seja devidamente apurado, com celeridade e competência, cumprindo todos os trâmites do devido procedimento legal e que os culpados sejam exemplarmente punidos”, explica Gomes.

Ele pontua ainda que a Comissão também trabalha com um caráter educativo. “Nós oferecemos também, enquanto comissão da OAB, para abrirmos um diálogo e um debate com as instituições, para que possamos utilizar aquele caso como uma mudança de paradigma e que ele nunca mais aconteça no seio daquela instituição/empresa ou com aquelas mesmas pessoas”, conclui Gomes.

DELEGACIA ESPECIALIZADA, UMA LUZ NO FIM DO TÚNEL


Mas eis que, finalmente, surge uma esperança em meio a tantas denúncias de intolerância religiosa em Alagoas. Batizada de “Yalorixá Tia Marcelina”, uma forma de homenagear a mãe de santo símbolo que teve seu terreiro invadido e destruído em 1912, foi inaugurada recentemente, em agosto de 2022, a Delegacia Especial dos Crimes contra Vulneráveis.

A delegacia é um espaço específico que a população dispõe para apuração de crimes cometidos contra adeptos de religiões de matriz africana e outras minorias, como pessoas com deficiências, idosos, quilombolas, população em situação de rua e negros. A reportagem do portal Tribuna Hoje conversou com a delegada responsável, Rebeca Tenório, e ela explicou que ainda não há dados sólidos, porque na maioria das vezes os casos foram registrados como “crimes diversos”.

Delegacia Especial dos Crimes contra Vulneráveis Yalorixá Tia Marcelina foi inaugurada em agosto (Foto: Ascom PC/AL)

“Busquei aqui os dados de 2021 e do primeiro semestre de 2022, mas nada achei. Não quer dizer que não houve ocorrências, mas que as que ocorreram e foram comunicadas à polícia foram registradas como crimes diversos, sem os recortes necessários. O que posso dizer é que, da inauguração da delegacia para cá, registramos apenas dois casos de possível intolerância religiosa, nenhum com invasão de locais de adoração”, explica a delegada.

Para ilustrar esses crimes, a delegada coloca como exemplo um suposto ataque a símbolos do catolicismo. “Recentemente, fomos cobrados sobre dois supostos ataques a símbolos do catolicismo aqui em Maceió. Como tinha as datas e a localização do fato, fui em busca dos registros e descobri que um foi uma ocorrência como furto (alguém arrombou a igreja para furtar) e outro como dano ao patrimônio público (depredaram uma imagem de nossa senhora em praça pública)”, explica Rebeca Tenório.


Ministério Público e o encaminhamento dos crimes

Titular da Promotoria de Direitos Humanos do Ministério Público Estadual, braço do órgão por onde chegam as denúncias e provas dos crimes de intolerância religiosa, o promotor Flávio Gomes explica como procede a instituição enquanto representante do Estado nas denúncias dos órgãos auxiliares (polícia, OAB e da própria Federação Zeladora de Religiões Tradicionais Afro-Brasileiras). “Se preciso for, a própria apuração para que os supostos culpados sejam denunciados à Justiça, o MP faz”, diz o promotor. “Se nesses casos de intolerância religiosa quem assim procede seguisse os mandamentos universais ‘Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo’, certamente não teríamos esses casos infelizes na nossa sociedade, ainda mais em se tratando de religião”, explica Gomes. Questionado se as 17 denúncias já teriam chegado ao MP, Gomes diz que alguns desses processos podem até já estarem sendo finalizados. “O MP recebe as demandas e o MP requisita e manda apurar e depois volta para elaborar o processo e se torna parte do processo com as provas. Depois esse processo é encaminhado para a Promotoria Criminal que denuncia os acusados à Justiça, que acata ou não a denúncia”, completa. “De uma coisa tenha certeza: o Ministério Público sempre estará do lado mais fraco”, conclui.

ATABAQUES E ATAQUES: EPISÓDIOS DE INTOLERÂNCIA CONTADOS POR QUEM SOFREU NA PELE

Era 2015. Um caso de intolerância religiosa chamou atenção da mídia nacional e foi divulgado até internacionalmente. A Mãe de Santo Neide Oyá D'Oxum, dirigente do Grupo União Espírita Santa Bárbara (Guesb), localizado na capital alagoana, também foi vítima de intolerância religiosa. Ela foi xingada pela ex-esposa do ator Henri Castelli, a jornalista Juliana Despírito, após ele postar em seu Instagram uma foto da filha vestida em trajes da religião africana, no colo da Mãe Neide.

O Tribuna Hoje foi até a cidade de União dos Palmares, no sítio Paraiso, próximo à entrada da Serra da Barriga, conversar com Mãe Neide sobre os atuais casos de intolerância religiosa e saber dela como as pessoas que sofrem este tipo de preconceito ou ação podem ser amparadas.

“Sempre existiram e existirão casos de intolerância religiosa. Existe um preconceito impregnado e que ficou mais evidente nos últimos anos. São chocantes os relatos que ouvimos dos irmãos da Umbanda, do Candomblé. Falta passar conhecimento para que as futuras gerações respeitem a religiosidade de cada indivíduo e isso deve ser feito desde sempre. Aqui no meu estabelecimento, por exemplo, recebo a todos independente de ideologias, religião ou partido político com muito respeito e amor, mas tem gente que não quer tomar uma água e encostar em nada, justamente por preconceito”, disse mãe Neide.

“Sofri na pele essa intolerância e meu conselho é que quem sofrer denuncie, sei que é difícil ser elucidado o caso, mas, com certeza, terá alguém com bons olhos que vai levar o caso adiante e mostrar que não pode ficar impune”, disse. Ela afirma ainda que, na maioria das vezes, o ataque é feito por pessoas de outros grupos religiosos.

Assim como Mãe Aliete, Mãe Neide diz que por falta de testemunhas, a subnotificação ainda é grande. “É difícil alguém querer testemunhar por conta da pós-denúncia, não temos certeza se seremos amparados e há o temor da retaliação”, ressalta.

Veja o que Mãe Neide fala sobre a intolerância e o preconceito contra as religiões de matriz africana em Alagoas na entrevista a seguir.

Mãe Neide no Sítio Paraíso, em União dos Palmares-AL (Foto: Edilson Omena)

O ano era 2018. Um ataque à casa de religião de Matriz Africana chamou atenção das autoridades. Começo da noite, por volta das 18h, era um sábado, 3 de junho daquele ano. Durante uma cerimônia da Comunidade Tradicional de Matriz Africana Ilê Nife Omo Nije Ogba, localizada no conjunto Margarida Procópio, em Rio Largo - região metropolitana de Maceió, a Mãe de Santo Yalorixá Nailza Araújo, que coordenava a casa à época, contou que todos os participantes foram surpreendidos com uma “chuva de pedras” que foram arremessadas sobre o telhado. “Crianças e jovens entraram em desespero. Eles foram acolhidos pelos adultos. A polícia foi acionada diversas vezes [umas 15], tanto para o Disque 100 quanto 190, mas não ouve retorno. A ação dos vândalos perdurou até mais da meia-noite, quando nós, não aguentando tanta intolerância, saímos pelas ruas do conjunto sinalizando a importância da garantia de direitos”, relatou à época.

O caso chamou atenção das autoridades e entraram em cena a OAB/AL, a Polícia Civil e o Ministério Público Estadual (MP/AL).

Um grupo de religiosos acompanhou a yalorixá. Eles decidiram em reunião acionar as federações, a Secretaria de Estado da Mulher e dos Direitos Humanos, a Organização dos Advogados do Brasil em Alagoas e os órgãos competentes municipais e estaduais para buscar soluções.

“Não podemos nos silenciar, é preciso que o poder público nos dê liberdade de culto, somos cidadãos, pagamos nossos impostos”, ressaltou a yalorixá Nailza Araújo.

Pedras jogadas no terreiro causaram destruição em 2018 (Foto: Reprodução)

A yalorixá é uma mulher negra que mantém as tradições herdadas pelos seus antepassados africanos e promove o repasse destes saberes para os mais jovens de forma prática. À época, disse que vinha sofrendo com a intolerância no seu cotidiano.

“O terreiro tem em seu entorno diversas igrejas pentecostais e muitos de seus fiéis residem próximo. Muitas vezes, a falta de compreensão e respeito transforma-se em perseguição. E isso acaba sendo definido como um crime de ódio que fere a liberdade e a dignidade humana, pois a liberdade de expressão e de culto são asseguradas pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e pela Constituição Federal”, comentou Nailza diante da situação.

Em Maceió, em 2019, um caso tomou as manchetes do noticiário que lembrou bem o episódio que ocorreu em 1912. Um terreiro de candomblé foi alvo de violência e intolerância religiosa durante a madrugada do emblemático dia 13 de maio, dedicado à memória da assinatura da Lei Áurea. O centro fica localizado no Conjunto Otacílio de Holanda, na Cidade Universitária, parte alta de Maceió. Veronildes Rodrigues da Silva, a “Mãe Vera”, já falecida, à época disse que durante a noite alguém tentou entrar no centro, mas não conseguiu e retornou durante a madrugada por volta de 4h. “Tentaram entrar, mas não conseguiram devido ao portão ser muito forte e correram. Às quatro horas eles voltaram, derrubaram o portão e destruíram o que tinha na área, foi quando eu chamei os vizinhos”, afirmou.

Segundo Mãe Vera, havia várias pessoas dentro do centro, mas ninguém ficou ferido, e só a área externa foi afetada. “Por eu viver na militância da vida, cuidando da minha comunidade, sei que não foi ninguém daqui. Não posso apontar o dedo para dizer que foi alguém, não tenho como. Há pouco terminei um projeto, ‘Maracatu na Comunidade’, não tivemos atrito com ninguém que motivasse o ataque”, completou Mãe Vera. Vera foi uma das poucas a registrar Boletim de Ocorrência na Polícia Civil por esse tipo de crime.

Um caso ainda mais recente aconteceu no dia 29 de setembro de 2021 quando dois homens gravavam um vídeo afirmando que não gostavam de negros, petistas e “macumbeiros”. Eles enalteceram o presidente Bolsonaro e, enquanto falavam, apresentavam uma espécie de chicote, dizendo que essas pessoas precisavam levar chicotadas.

O caso aconteceu na cidade de Coruripe. Diante do fato, o presidente da Federação Zeladora das Religiões Tradicionais Afro-Brasileiras em Alagoas (Fretab/AL) na ocasião era Paulo Silva (in memoriam). Silva pediu que a Polícia Civil tomasse as devidas providências contra os indivíduos que apareciam nas imagens.

PESQUISADOR APONTA MAIS TRÊS GRANDES QUEBRAS

Em Alagoas, o historiador, pesquisador da cultura afro-brasileira Célio Rodrigues, também conhecido como “Pai Célio”, administrador e fundador do primeiro museu a céu aberto de tradições de matriz africana de Maceió, conta que sofre na pele a discriminação nada velada por ser adepto da religião. “Muitas vezes precisei me deslocar de ônibus até o centro da cidade e notei que quando uso turbante, ninguém senta na poltrona onde eu estou por pura discriminação, desconfiança, medo e ignorância também”, relata Pai Célio. “Essa coisa de não sentar perto é também uma espécie de Quebra, porque mostra a faceta psicológica com viés discriminatório das pessoas”, completa.

Para Pai Célio, os ‘Quebras’ contra casas de religiões de matriz africana aconteceram em número de quatro episódios na historiografia brasileira e alagoana, e não somente no ano de 1912. “O primeiro grande Quebra foi no ano de 1695, no século dezessete, com o extermínio e os grandes genocídios em todo os quilombos ligados à Serra da Barriga, no município de União dos Palmares. Se não tivesse ocorrido aquele Quebra, com certeza teríamos em Alagoas o maior povo bantu do mundo fora da África”, sustenta o historiador. “Vieram homens e mulheres livres da África. Aqui é que eles foram escravizados”, completa Célio.

Pai Célio relata que sofre discriminação até quando anda de ônibus (Foto: Sandro Lima / Arquivo)

O segundo grande Quebra, de acordo com ele, foi a divisão de 1817 com a separação de Alagoas e Pernambuco. “Um problema que ocorre em Pernambuco, a Revolução Praieira, respinga em Alagoas. E por isso digo que Alagoas passou a ser o quintal cultural de Pernambuco porque é um estado que tem o maior número de folguedos como o maracatu, taieira, baianas, todos relatando os sofrimentos do povo negro alagoano. O batido do tambor do bumba meu boi é a batida do xangô, com origens negras”, explica. E o terceiro Quebra de 1912, acrescenta Pai Célio, foi gerado por um problema político que respingou contra a religiosidade. “Um grupo contrário ao governador não havia encontrado nenhuma mácula para derrubá-lo, foram mexer e encontraram brecha justamente na religiosidade do então governador”, explica Pai Célio. E os dias 1 e 2 de fevereiro não foram escolhidos à toa. Era o dia de Oxum, e no sincretismo religioso era também o Dia de Nossa Senhora das Candeias, com tudo preparado para a festa em homenagem à santa com as chamadas “obrigações”, em todos os terreiros naquele fatídico dia.

O quarto grande Quebra, diz Célio, foi a ditadura Vargas, na ascensão do gaúcho Getúlio Vargas ao poder em 1930, que culminou com o fechamento de todas as casas de terreiro do país, mediante a outorga de uma lei. Sobre se considera os episódios de violência dos dias atuais uma espécie de Quebra moderno, Pai Célio diz que não é um quebra-quebra propriamente dito, mas um ‘Quebra administrativo’. “A atual presidência da Fundação Palmares, por exemplo, tem uma visão distorcida. E outro absurdo são os fatos de violência e intolerância religiosa em várias casas de terreiros no Rio de Janeiro por movimentos e milícias ligados a evangélicos”, relembra. Ele acrescenta que em Alagoas tiraram um terreiro antigo no bairro de Jaraguá de uma yalorixá para colocá-la em um apartamento. “Onde já se viu candomblé dentro de apartamento?”, questiona, ao lembrar também do quebra-quebra no centro de Mãe Vera. “As igrejas neopentecostais no bairro do Cruzeiro do Sul jogaram chuvas de pedras em um terreiro de uma senhora por lá. Mas o pior é que esses inquéritos não andam, não chegam. É o preconceito institucional de um policial que é crente e não se interessa em apurar”, diz Célio, sem se importar com possíveis críticas, justamente porque também é um policial civil, porém aposentado. “Com o fenômeno ocorrido em 1912, o grupo étnico africano da Nação Xambá foi expulso de Alagoas e se ramificou por vários estados do Nordeste, principalmente em Pernambuco. Em verdade, 1912 é considerado uma diáspora do candomblé em Alagoas”, avalia.

MÃE MIRIAN, PRECONCEITOS E HUMILHAÇÕES DESDE ADOLESCENTE

Quem visita o terreiro de Mãe Mirian, uma das mais antigas yalorixás de Alagoas, no bairro da Ponta da Terra, em Maceió, tem como boas-vindas a saudação na língua yorubá com o significado: “casa de amor, filho das águas do Poço Betá”. Incontinenti à pergunta da reportagem sobre intolerância ao longo de seus 77 anos de missão, Mirian não se faz de rogada e responde no ato: “Sempre acontece intolerância ou racismo aos povos tradicionais de Matriz Afro. Desde o episódio do Quebra de 1912 com a trágica e absurda morte da Mártir Tia Marcelina, acontecimento humilhante e desesperador, eu, por exemplo, em 1946, ainda adolescente, sofri maus tratos, humilhações e sofrimentos, a começar de minha mãe. Levei muitas pisas de cinturão por dizer que estava com demônios, cheguei a provocar a morte por afogamento”, conta Mirian.

Depois, conta a sacerdotisa, veio a perseguição da polícia às casas de candomblé no Governo Silvestre Péricles, com queimas de roupas e objetos do culto e prisões que levavam tudo para a segunda delegacia que era onde hoje se encontra o Museu da Imagem e do Som, em Jaraguá.

Mãe Mirian, yalorixá das mais antigas de Alagoas, fala sobre os preconceitos que ela sofreu desde criança (Foto: Edilson Omena / Arquivo)

“Evangélicos passam por mim com frases baixas como se fosse pessoa do mal. Olhares maliciosos em consultórios médicos ou em postos de saúde. Algum tempo atrás fui criticada e considerada como mulher desinformada por um certo pastor da Igreja Universal por eu dizer que eles tinham na igreja deles procedimento dos cultos do candomblé, como banho de arruda, tapete de sal e outras mais”, relata a sacerdotisa.

“Olha, isso foi uma revolução. Recebi mensagens quase de todos os estados do Brasil, até de Portugal, me encorajando e pedindo para levar a causa ao Ministério Público e desclassificando esse bendito pastor”, completa Mirian.

“Mas estou firme, forte, lúcida e me sinto realizada em resistir com minha fé até o final de meus dias. Felicidades para todos e que Deus e os Orixás em forma de natureza abençoem e protejam todos os intolerantes da minha religião”, finaliza a sacerdotisa que também é Patrimônio Vivo do Estado certificado pelo governo.

Mirian é a herdeira legítima do Vodun - Posú Betá no Brasil, sendo a mais velha herdeira da Nação Posú Betá do país.

NA TERRA DO QUEBRA, TAMBÉM TEM CARAVANA EM DEFESA DA LIBERDADE RELIGIOSA

O desembargador Tutmés Airan, do Tribunal de Justiça de Alagoas (TJ/AL), é um humanista por excelência. Sorte a dos simpatizantes e praticantes de religião de matriz africana. É uma das personalidades no combate à intolerância religiosa no Estado. À frente da Coordenadoria de Direitos Humanos do TJ/AL, foi no seu período como presidente (2019-2020) que o desembargador criou um importante programa que deu voz aos diferentes, sobretudo os religiosos.

“O Poder Judiciário é o fiador do direito das pessoas. Dentre os direitos comuns aos homens, há um que é absolutamente significativo, que é o direito que ele tem de encontrar e caminhar em relação ao seu Deus, ao Deus em que ele acredita”, disse.

Sem se fazer de rogado, e usando e mostrando ao Tribuna Hoje um patuá que recebeu de presente dos adeptos, Tutmés explica como criou o projeto Caravanas em Defesa da Liberdade Religiosa, que promove visitas a terreiros e rodas de conversa sobre liberdade de culto, levando ainda serviços a comunidades.

Tutmés Airan carrega o seu patuá (Foto: Adailson Calheiros)

“A intolerância precisa ser combatida. Cabe ao Judiciário criar uma ossatura institucional capaz de fazer esse enfrentamento. Criamos o projeto Caravanas e, a partir dele, surgiu a necessidade da Vara de combate aos crimes contra as populações vulneráveis. Depois do surgimento da Vara, veio a ideia da delegacia correlata”, explicou o desembargador, ressaltando que a delegacia está prestes a entrar em operação na Capital.

Tutmés é idealizador, inclusive, do Centro de Cultura e Memória do Poder Judiciário de Alagoas (CCM) que, após reforma, reabriu ao público no início deste ano. “O Centro não podia deixar de fora uma das maiores violências sofridas pelo povo de santo no Brasil. Foi um movimento com viés político, com o objetivo de afastar o então governador Euclides Malta”, completa, a se referir ao Quebra de 1912.

ESTADO PEDE PERDÃO, MAS CRÍTICAS CONTINUAM

Era fevereiro de 2012, portanto há 10 anos, quando um outro episódio marcara a sociedade alagoana de então. Na efeméride do centenário do Quebra de Xangô, o Governo de Alagoas, numa ação simbólica que contou com milhares de adeptos de religião africana, pediu perdão oficial pelo episódio um século depois, em uma solenidade a céu aberto, defronte do palácio Marechal Floriano Peixoto, sede do governo estadual. Antes da assinatura foi realizado um cortejo popular, que passou pelas principais ruas da parte central de Maceió, mostrando um pouco das religiões de matriz africana.

Uma programação cultural também marcou aquela semana em 2012. O projeto “Xangô Rezado Alto – celebrando a memória do Quebra”, que culminou com o perdão oficial no centenário da operação. À época, o então governador Teotonio Vilela (PSDB) assinou o ato que serviu para reconhecer um “erro histórico” cometido pelo Estado. Aquela celebração indicou clara disposição de construir uma nova relação com esses cultos. O Estado sinalizava com o ato simbólico ali um novo momento que tinha como intenção acarretar em um novo tratamento e disposição de novas políticas públicas para os cultos de matriz africana.

Em 2012, no centenário do Quebra, ex-governador Teotonio Vilela Filho e Mãe Mirian participam do ato de perdão do Estado (Foto: Reprodução)

Para a socióloga Mônica Carvalho, o ato do perdão do Estado pelo episódio de 1912 foi importante, mas não passou de um gesto “apenas simbólico”, sem ações efetivas no que concerne à aplicação de políticas públicas para a comunidade religiosa de matriz africana depois do ato do então governador Teotônio Vilela.

“Minha crítica no pedido de perdão não estava fechada, por exemplo, como o Estado iria trabalhar o corpo de professores e diretores do Estado ou instrumentalizar o corpo de servidores da saúde, o PSF, por exemplo, para que não se negasse a entrar e atender em um terreiro. Ou uma pessoa paramentada a chegar numa unidade de saúde e não fosse a última a ser atendida. No próprio organograma da Secretaria da Mulher e dos Direitos Humanos só constava nos quadrinhos os da mulher, indígenas e quilombolas, mas não havia o quadradinho do povo da matriz africana”, critica Mônica.

Para a socióloga Mônica Carvalho, perdão do Estado foi apenas uma ação simbólica, sem ação efetiva (Foto: Edilson Omena)


O ESTIGMA DA FALTA DE RESPEITO PELA FÉ DO OUTRO - NÚMEROS E DADOS NO BRASIL CHEGAM A QUASE 600 CASOS


Andar até o ponto de ônibus de roupas brancas e colar de contas, a chamada guia, foi o suficiente para a enfermeira Carolina Viegas, 35 anos, ser atingida por uma lata de refrigerante, jogada de dentro de um carro, seguido por gritos de "macumbeira" e "isso é coisa do diabo".

Além de Alagoas, as religiões de matriz africana, como Umbanda e o Candomblé, são as que mais sofreram preconceito por intolerância religiosa em 2022 país afora. O país registrou 586 ocorrências este ano até o momento.

Este é o número de queixas recebidas entre janeiro e junho apenas no Disque 100, serviço para denunciar violações de direitos do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, segundo levantamento recente.

O estado com mais registros é São Paulo, com 111 denúncias, seguido do Rio de Janeiro, com 97, Minas Gerais (51), Bahia (39), Rio Grande do Sul (26), Ceará (11) e Pernambuco (13).

No ano passado, no mesmo período, foram 466 denúncias. Ou seja, 2022 registrou um aumento de 17%. No primeiro semestre de 2020, foram 498 queixas -- um aumento agora de 9,4%.

Em todo o ano de 2021, foram 1.017 denúncias, e os estados que lideraram o ranking eram os mesmos.

Estados com mais casos em 2022Número de casos
São Paulo111
Rio de Janeiro97
Minas Gerais51
Bahia39
Rio Grande do Sul26
Alagoas17
Pernambuco13
Ceará11


RELIGIOSOS DE OUTRAS VERTENTES: UMA ESPERANÇA AO AMOR DE DEUS

O pastor Wellington Santos, da Igreja Batista do Pinheiro, em Maceió, e pertencente também à Aliança Batista do Brasil, opina sobre os episódios de intolerância registrados atualmente e faz um comparativo com o Quebra de 1912: “Se a gente não tiver cuidado, poderemos ter essa violência do Quebra reeditada aqui em nosso Estado”, reconhece o pastor. “Não podemos em nome da nossa fé destruir a fé do outro”.

E exemplifica: “No dia 12 de outubro partidários do atual presidente foram à Basílica de Aparecida, símbolo do catolicismo nacional, e o que vimos foram cenas absurdas de desrespeito e intolerância religiosa e, por tabela, política”, completa Santos.

“Quando a violência contra o outro não me mobiliza, uma hora essa violência pode vir contra mim”, afirma o pastor. “Nenhuma religião sozinha tem todas as respostas para todos os dilemas humanos ou para as desigualdades ou os vilões da dignidade humana, como a fome, por exemplo. Se não nos tornarmos humildes, pagaremos todos um preço muito alto por causa do egoísmo e da ganância”, destaca o pastor Wellington Santos.

O portal Tribuna Hoje também tentou ouvir um representante do catolicismo em Alagoas, mas até o fechamento desta edição não obteve nenhuma resposta dos sacerdotes contatados. Porém, reeditamos uma fala do assessor da Comissão para o Ecumenismo e o Diálogo Inter-Religioso da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e subsecretário-adjunto de pastoral da entidade, padre Marcus Barbosa, sobre o tema intolerância. Disse ele: “a intolerância é o comportamento de não aceitar o que é diferente de mim, do que eu penso, do que eu creio e do que eu faço. A intolerância dá o braço ao fundamentalismo, à discriminação, ao preconceito, a toda forma de fechamento em si mesmo ou no seu grupo”, disse Barbosa.

Para ele, a data é um convite à reflexão de como andam as relações entre as religiões; de como anda o respeito e a proteção do direito à liberdade religiosa e também das ações concretas que estão sendo realizadas a favor do diálogo e da paz entre as religiões. “É um dia que também nos ajuda a mostrar que estamos ainda longe do mandamento de Jesus: ‘Como eu vos amei, assim também deveis amar-vos uns aos outros’ (Jo 13,34)”, aponta o padre.

Desde 1949, o dia 21 de janeiro é marcado como o Dia Mundial da Religião. No Brasil, em 2007, após um atentado ao terreiro de Candomblé Ilê Axé Abassá de Ogum, no bairro de Itapuã, em Salvador (BA), foi decretado que a data também marcaria o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. Em decorrência do ato violento, a yalorixá Gildásia dos Santos, conhecida como Mãe Gilda, faleceu de um ataque cardíaco.

Dados recentes do Ministério dos Direitos Humanos através do Disque 100 mostram que católicos e protestantes são vítimas de 1,8% e 3,8% das denúncias de intolerância religiosa, respectivamente. As denúncias relativas a fiéis do Candomblé e da Umbanda somam 25% do total. Em contrapartida, segundo pesquisa Datafolha de dezembro do ano passado, os católicos são 50% da população brasileira. Os evangélicos, 31%, e os adeptos de religiões de matriz africana, 2%.


(Foto: Reprodução / Adailson Calheiros)


O “Quebra” continua. Somente em 2023, sete casos registrados

Entre os dias 25 de fevereiro e 30 de maio de 2023 – portanto, depois de 111 anos do episódio do Quebra de Xangô – Alagoas não parou de produzir episódios lamentáveis de intolerância religiosa, agora também contra símbolos da fé católica, com três casos registrados. Nesse rol, também em 2023, mais casos de intolerância contra religião de matriz africana, que, ao todo, somam-se agora (juntando-se os de matriz africana e católicos) 24 casos de intolerância registrados somente no período entre 2022 (quando foi produzida esta reportagem) e 2023 (com a atualização dos dados).

Um desses casos que chamam atenção mistura violência doméstica com intolerância religiosa e chocou os moradores de Maceió no dia 15 de abril deste ano. Um homem foi preso após agredir o próprio filho de 14 anos, que não queria seguir a mesma religião dele.

O caso foi registrado por uma equipe do programa Ronda no Bairro, policiamento que trabalha com gerenciamento de crises em Maceió. Os agentes informaram que o pai disse que estava castigando o filho porque o menino lhe afrontou e se recusou a seguir os seus preceitos religiosos.

A equipe do Ronda no Bairro foi acionada por populares que denunciaram a agressão. Ao chegar ao local, os agentes encontraram o adolescente com marcas de espancamento pelo corpo. O pai foi detido e encaminhado para a Central de Flagrantes da Polícia Civil alagoana, onde foi autuado por lesão corporal.

O caso é mais um exemplo do aumento da intolerância religiosa no Brasil. Segundo dados atualizados da Secretaria Nacional de Cidadania, o número de denúncias desse tipo de violação aumentou 106% em apenas um ano. Passou de 583, em 2021, para 1,2 mil, em 2022, uma média de três por dia. O Estado recordista foi São Paulo, com 284 casos.

Segundo o próprio menino, ele foi lesionado por golpes de cinturão desferidos pelo pai.

E na sequência de discriminação religiosa em Alagoas, um dia antes, no dia 14 de abril, a Comissão Especial de Direito e Liberdade Religiosa da Ordem dos Advogados do Brasil em Alagoas (OAB/AL) recebeu mais uma vítima de intolerância religiosa em Maceió. Desta vez, foi uma mulher praticante de religião de matriz africana que foi vítima de xingamentos e ameaças praticadas pelo ex-companheiro.

À OAB/AL, a mulher, que é pernambucana e está morando em Alagoas há apenas dois anos, contou que sempre notou um certo preconceito por parte do ex-companheiro em relação à questão religiosa e racial, com alguns comentários maldosos sendo proferidos. Desta vez, com as agressões verbais e ameaças, ela decidiu denunciar.

E a intolerância religiosa também bateu à porta dos credos da fé católica. No dia 25 de fevereiro, também na capital alagoana, ocorreu a destruição da imagem de Nossa Senhora de Fátima, instalada no canteiro central da Avenida Ministro Humberto Gomes de Barros, no bairro do Benedito Bentes, parte alta de Maceió.

Já no dia 6 de março, outro ato contra a fé católica. A Igreja Matriz de São José, na Avenida Siqueira Campos, no bairro do Trapiche da Barra, mais uma vez em Maceió, foi alvo de depredação e teve imagens religiosas destruídas. O pároco, padre Leonel Quaresma, fez um vídeo demonstrando sua indignação e pedindo orações pelo ato de vandalismo, cobrando mais segurança.

Imagens de Padre Cícero (foto) e de Nossa Senhora da Imaculada Conceição, que ficavam na fachada de igreja no Trapiche, foram destruídas (Foto: Adailson Calheiros / Arquivo)


De acordo com o padre Márcio Roberto, nos últimos anos têm sido crescentes os ataques às igrejas e imagens cristãs católicas. “Nós repudiamos esse e qualquer outro tipo de vandalismo, seja ao patrimônio público ou outras religiões”, disse o padre.

Na sequência, no dia 22 de março, mais uma igreja católica teve uma de suas imagens sacras quebrada em Maceió. Desta vez, o vandalismo foi registrado no bairro de Fernão Velho, na Paróquia de São José Operário, na Capela de Nossa Senhora de Fátima, localizada na região conhecida como ABC.

De acordo com informações de moradores da região, a imagem foi levada da porta da capela e encontrada jogada com a cabeça quebrada.

Advogado denuncia que PMs invadiram e depredaram terreiro em Maceió

Outro caso grave e lembrando mais fielmente o Quebra de Xangô de 1912 – pois desta feita foi contra um praticante de matriz africana - , ocorreu no dia 3 de março, quando um advogado denunciou que policiais militares invadiram e depredaram o terreiro Abassá de Angola, fundado pela falecida Mãe Vera, localizado no conjunto Otacílio Holanda, no bairro Cidade Universitária, parte alta de Maceió. A ação teria ocorrido, segundo Pedro Gomes, para procurar drogas e sem mandado expedido pela Justiça.

O advogado Pedro Gomes é membro do Instituto do Negro de Alagoas (Ineg/AL) e divulgou o caso por meio das redes sociais. "Guarnição da PM de Alagoas invadiu e depredou o terreiro Abassá de Angola, fundado pela saudosa Mãe Vera. Sob a justificativa de procurar drogas, sem qualquer mandado e sem qualquer indício ou evidência de que poderia existir algum tipo de entorpecente", afirmou Gomes na publicação.

Segundo ele, a pessoa abordada pela guarnição é filho de santo e filho da atual yá do terreiro. Ele mora no local e "foi abordado pela PM, jogado na viatura e submetido à sessão de tortura para confessar ser traficante, enquanto sua mãe esperava a viatura chegar com ele na Central de Flagrantes, o que não aconteceu", destacou.