Violência contra LGBTQIA+ em Alagoas: em 2022, 10 foram mortos e 617 denúncias de agressões registradas

Alguns casos ganharam repercussão nacional; Ministério Público e OAB/AL garantem apoio às vítimas

Por Gabriely Castelo e Lucas França / Revisão: Bruno Martins | Redação Tribuna Hoje

“É impossível não se entender que há discriminação em razão da orientação sexual ou identidade de gênero ao se impedir o uso de equipamentos públicos/sociais, como dentre muitos, os banheiros. A aversão advinda de desrespeito ligado à básica condição humana de uso de sanitários, arrimada na orientação sexual ou de gênero viola a Constituição e, na essência, nosso Estado Democrático de Direito. Além disso, por certo, ofende-se a integridade física, psíquica e moral da vítima, afetando diretamente sua principal liberdade, a de existir de acordo com sua personalidade” - Manifestação de promotor da 14ª Vara Criminal da Capital do Ministério Público do Estado de Alagoas (MP/AL) – Crime Contra Menor / Idoso / Deficiente e Vulnerável.

O caso ocorreu no dia 3 de janeiro de 2020. Lanna Hellen foi impedida por um segurança de usar o banheiro feminino em um shopping da parte alta de Maceió. O segurança bateu à porta do banheiro e pediu para que Lanna se retirasse, pois uma cliente se sentiu incomodada.

“O acontecimento do shopping, querer usar o banheiro e ser impedida por ser uma mulher trans, foi a primeira vez que me aconteceu. Como eu residia em São Paulo, existe preconceito, mas não nessa gravidade, não como ocorreu no dia desse fato”, explicou Lanna. “Então eu fiquei muito chocada com o acontecido, fiquei surpresa por não poder usar o banheiro feminino, onde o segurança tinha alegado que uma cliente comunicou que se sentiria constrangida se encontrasse um homem no banheiro. Essa cliente nunca foi achada até hoje”, concluiu.

“Cada banheiro tem a sua cabine, tem a sua porta, simplesmente eu ia entrar, fazer xixi, lavar minhas mãos e sair do banheiro. Como fiquei chocada com o despreparo do segurança, fiz minha própria manifestação”, disse Lanna.

Lanna Hellen, influenciadora digital (Foto: Cortesia)
Lanna Hellen, influenciadora digital (Foto: Cortesia)

Depois do acontecido, Lanna gravou e divulgou vídeos indignada com a situação, subiu em uma das mesas da praça de alimentação do estabelecimento, onde reivindicou seu direito de usar o banheiro. Os seguranças a tiraram da mesa e levaram para o setor de carga e descarga. Esperaram a Polícia Militar e depois foram levados para a Central de Flagrantes.

“A polícia, que deveria nos proteger, nos defender, não tinha consciência do direito das pessoas trans, então eles próprios ficaram do lado da segurança, por não conhecer os direitos da comunidade. Fui levada para a doca do shopping, onde fiquei acuada. Fui algemada, colocada na viatura, detida na Central de Flagrantes com mais dois homens dentro”, relatou Lanna.

Lanna registrou um Boletim de Ocorrência (BO) e entrou com uma ação contra o shopping. O caso da transexual ganhou repercussão nacional e se tornou um dos casos mais comentados do Twitter.

Na ação penal, o juiz Ygor Vieira de Figueirêdo condenou o segurança por racismo com pena de um ano e seis meses, que se converteu em prestação de serviços comunitários de seis horas por semana - pelo mesmo período - e ao pagamento de 10 salários mínimos para ser destinado a um grupo ou organização não governamental de Alagoas que atue em favor da comunidade LGBTQIA+.

Para a condenação de racismo, o magistrado teve como base a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de 2019 que permitiu a criminalização da homofobia e da transfobia. O STF considerou que atos preconceituosos contra homossexuais e transexuais devem ser enquadrados no crime de racismo.

“Eu sou a primeira trans no Nordeste que ganhou um caso de transfobia enquadrado no de racismo. Mas ainda estamos aguardando o processo contra o shopping. Ia ter uma audiência, mas o shopping pediu uma contestação para o juiz porque não quer responder pelo fato sozinho. Como a empresa de segurança é uma empresa terceirizada, quem vai responder pela transfobia que sofri no shopping dia 3 de janeiro de 2020 vai ser o shopping junto com a empresa terceirizada de segurança”, explicou Lanna.

CASO RECENTE DE VIOLAÇÃO DOS DIREITOS

Um caso recente, registrado em Alagoas, aconteceu dia 28 de agosto deste ano. A influencer trans Rebecca Rodrigues denunciou ter sido vítima de transfobia durante o evento Miss e Mister Alagoas 2022, na cidade de Arapiraca. De acordo com o relato da influencer em suas redes sociais, ela estava usando o banheiro feminino do Espaço Renê quando foi expulsa duas vezes pelos seguranças do local. “Nunca imaginei ser tão humilhada e diminuída em um local que dissemina a diversidade e a pluralidade, mas que na verdade entrega ódio e preconceito”.

A jovem disse que essa questão é sempre muito traumática para as meninas trans, por ser uma luta diária, que só sabe quem sente na pele. “Enquanto eu estava no local, ainda fizeram pouco caso da situação e uma das seguranças que me expulsou começou a me filmar, enquanto seus colegas ficavam iguais cães de guarda na porta do banheiro”, contou.

Rebecca Rodrigues sofreu transfobia durante evento em Arapiraca (Foto: Acervo pessoal)
Rebecca Rodrigues sofreu transfobia durante evento em Arapiraca (Foto: Acervo pessoal)

Ainda de acordo com a influencer Rebecca Rodrigues, os funcionários disseram que o fato teria acontecido por ordem do proprietário do estabelecimento. “Ele vai ter que ser responsabilizado, assim como todos os responsáveis por essa humilhação. Em 2022, não saber que isso é crime?”, questionou Rebecca.

A OAB/AL segue acompanhando o caso por meio da Comissão de Diversidade Sexual e Gênero. Segundo a OAB/AL, a comissão foi acionada através de uma amiga da vítima que presenciou toda a situação e entrou em contato com membros do colegiado para entender como elas deveriam proceder.

À época, por meio de nota, a coordenação do evento disse manifestar “repúdio contra a retirada de forma violenta e constrangedora, por parte da equipe de segurança, de uma mulher transexual que utilizava o banheiro feminino durante a realização da final do Miss e Mister Alagoas”.

Ainda de acordo com a nota, ao tomar ciência do acontecimento, o coordenador do concurso procurou pessoalmente a vítima das agressões e manifestou solidariedade. “Sendo assim, pedimos sinceras desculpas à vítima por tamanho constrangimento e nos colocamos à disposição dela e das autoridades para contribuir no que for preciso para que os responsáveis pelo ato de discriminação respondam pela atitude”, finalizou a nota.

Os proprietários do Espaço Renê também se pronunciaram através de nota afirmando que “incumbe ao locatário e promovedor do evento, inclusive por disposição contratual, a responsabilidade exclusiva quanto às diretrizes e condução do evento promovido”.

Por fim, disseram lamentar o episódio, reafirmando que “o Espaço Renê não estimula ou compactua com nenhuma atitude discriminatória”.

De 10 mortes, apenas quatro foram elucidadas, diz GGAL

Só este ano, de acordo com o Grupo Gay de Alagoas (GGAL), o estado já registrou 10 mortes violentas de pessoas LGBTQIA+, a sigla que representa lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, queers, intersexos, assexuais e demais orientações e identidades. Destes casos, apenas quatro foram elucidados, afirma o presidente da entidade Nildo Correia.

Ele aponta que seis desses assassinatos foram registrados no interior de Alagoas.

A última morte que entrou na estatística do GGAL foi registrada na madrugada do sábado (22) quando um homem invadiu a residência e agrediu o namorado de seu ex com golpes de foice, fugindo em seguida. Era por volta de meia-noite quando a agressão foi registrada e militares do 5º Batalhão de Polícia Militar (BPM) foram acionados para a ocorrência de homicídio.

A vítima era um homem trans morador do bairro de Antares e foi socorrida para o Hospital Geral do Estado (HGE) por terceiros. Ele acabou não resistindo aos ferimentos e morreu.

Para o presidente do GGAL, o número de mortes violentas está relacionado ao preconceito que ficou ainda maior em 2018 com as falas do atual presidente Jair Messias Bolsonaro. “A certeza da impunidade e essa libertinagem fantasiada de defensora da boa moral fortaleceu e muito a LGBTfobia no país”.

Nildo Correia, presidente do Grupo Gay de Alagoas (Foto: Edilson Omena)
Nildo Correia, presidente do Grupo Gay de Alagoas (Foto: Edilson Omena)

Correia diz que ainda faltam políticas públicas concretas. “É preciso investir em campanhas de conscientização, profissionalização, empregabilidade e fortalecimento da maior ferramenta de transformação social LGBT do estado, como o Centro de Acolhimento Ezequias Rocha Rego (CAERR) - ferramenta essa que hoje a duras penas trabalha tudo isso, mesmo com todas as dificuldades”.

AGRESSÕES

Em relação às agressões, Nildo diz que mais de 75% são realizadas por pessoas próximas às vítimas. “A intolerância contra LGBTQIA+ começa muitas vezes em casa e envolve agressores conhecidos das vítimas, como familiares, vizinhos e companheiros. São casos de humilhação, ameaça, hostilização, discriminação e até agressão física e, em muitos casos, a vítima é expulsa de casa”, comenta.

Este ano, de acordo com o GGAL, já são 617 denúncias de agressões físicas e morais. “A última que recebemos foi nesta segunda-feira (24) de um homem trans que foi agredido por um dono de bar aqui na capital. Mas são dados com subnotificação. O preconceito, o medo da repressão e a vergonha de denunciar, ainda fortalecem e muito a impunidade”, pontua Correia.

DISQUE 100

Alagoas registrou 15 denúncias de violência contra população LGBTQIA+ e 74 violações de direitos desta população no primeiro semestre deste ano, por meio do Disque 100, segundo dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH). O número de denúncias apresentou um aumento de mais 100%, se comparado com o mesmo período do ano anterior, em que foram contabilizadas sete denúncias.

Em todo o Brasil, houve um aumento de 7,36% nas denúncias de violência contra população LGBTQIA+. Conforme os dados da ONDH, foram registradas 729 denúncias neste ano, entre os meses de janeiro e junho, e 679 denúncias no mesmo período de 2021.

De acordo com a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, o número de denúncias representa a quantidade de relatos de violação de direitos humanos envolvendo uma vítima e um suspeito, sendo que uma denúncia pode conter uma ou mais violações de direitos humanos. Já as violações configuram qualquer fato que atente ou viole os direitos humanos de uma vítima como, por exemplo, maus tratos e exploração sexual.

Levantamento aponta que Nordeste é a região mais insegura

Um levantamento feito pelo Grupo Gay da Bahia (GGB) revelou que, de janeiro a junho de 2022, o Brasil já registrou 135 mortes de população LGBTQIA+. De acordo com a pesquisa, que é baseada em coletas de notícias de jornais e portais digitais, houve uma queda de 20% em relação ao mesmo período de 2021, quando foram registradas 168 mortes.

Neste primeiro semestre, de acordo com a pesquisa, foram mortos na maioria gays, travestis, transexuais e mulheres trans. Entre as vítimas, 33,3% são pardas; 22,9%, brancas; 9,6%, negras; e 34,2% não tiveram a cor da pele identificada.

O levantamento do GGB aponta que a Região Nordeste teve o maior número de casos, foram 52 mortes, seguida pelo Sudeste com 38, o Norte com 23, e o Centro-Oeste com 17. Já a Região Sul teve cinco mortes.

Em todo o ano de 2021, o país registrou 300 mortes de LGBTQIA+ segundo aponta o Observatório de Mortes Violentas do GGB. Ou seja, 8% a mais que em 2020 quando foram registrados 276 homicídios (92%) e 24 suicídios (8%). O Brasil continua sendo o país onde mais LGBTQIA+ são assassinados: o equivalente a uma morte a cada 29 horas.

Esses dados se baseiam em notícias publicadas nos meios de comunicação, sendo coletados e analisados pelo Grupo Gay da Bahia, que há 40 anos divulga essas tristes estatísticas, cobrando do governo políticas públicas que erradiquem essa mortandade, que vai muito além dos números, pois representa apenas a ponta de um iceberg de ódio e sangue.

RANKING DE 2021

São Paulo, Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Paraná, Ceará, Pará, Pernambuco, Mato Grosso e Alagoas. Estes são os 10 estados com maior índice de mortes violentas em 2021, sendo quatro deles na Região Nordeste.

Segundo o levantamento: São Paulo fica em 1º lugar no ranking com 42 casos (14%); em 2º, a Bahia com 32 registros (10,7%); em 3º, Minas Gerais com 27 (9%); em 4º, o Rio de Janeiro com 26 casos (8,7%); em 5º, o Paraná com 19 (6,33%); em 6º, o Ceará com 17 (5,7%); em 7º, o Pará com 17 (5,7%); em 8º, Pernambuco com 16 (5,33%); em 9º, o Mato Grosso com 15 (5%); e em 10º, Alagoas com 13, o que configura 4,33%.

AGRESSORES

A impunidade dos assassinos de LGBTQIA+ constitui gravíssimo problema e agravante para a repetição destes mesmos crimes: apenas 95 dos 300 criminosos foram identificados nos noticiários e demais fontes em 2021, ou seja, somente 31,67% dos casos foram elucidados no mesmo ano da ocorrência, o que representa três em cada 10 episódios de mortes violentas de LGBTQIA+, sendo tal número ainda mais desfalcado pelo fato de alguns dos agressores serem menores de idade, que recebem penas muito mais brandas.

AÇÕES REALIZADAS

Casa de Acolhimento em Alagoas para população LGBTQIA+ tem sete moradores atualmente

Inaugurado em maio de 2021, o Centro de Acolhimento Ezequias Rocha Rego (CAERR) para a população LGBTQIA+, localizado no bairro do Clima Bom, parte alta de Maceió, atualmente tem sete moradores. Segundo o GGAL, espaço pode acolher 10 pessoas, mas já teve que acolher 12.

Idealizado pelo presidente do GGAL, o CAERR tem diferentes atividades. “Além de prestar um apoio de assistência social, o Centro oferece arte e cultura, comunicação, educação, esporte e lazer. Além da empregabilidade, sustentabilidade e turismo. Também é feito o apoio jurídico, planos e projetos, saúde etc.”, expõe Correia.

Nildo relembra que o nome do centro foi escolhido em homenagem ao militante do Grupo Gay de Alagoas (GGAL), o professor Ezequias Rocha Rego, assassinado em 2011 no bairro de Jacarecica, em Maceió.

Em AL, Semudh realiza escuta de denúncias de violações de direitos humanos e faz acompanhamento jurídico

A Secretaria de Estado da Mulher e dos Direitos Humanos (Semudh) ressaltou, por meio da Superintendência de Políticas para os Direitos Humanos e a Igualdade Racial, que realiza a escuta de denúncias de violações de direitos humanos, incluindo LGBTfobia, além de realizar o acompanhamento jurídico das mesmas.

Segundo a secretaria, de acordo com o caso é realizado o acompanhamento de todo o devido processo legal ou encaminhamento para órgãos e instituições parceiras que trabalham com suporte jurídico, de saúde ou assistência social. As denúncias podem ser feitas diretamente na sede do órgão ou feitas de forma online, por telefone (82) 98878.2404 / 8879-7571 ou através do e-mail [email protected].

“Em Alagoas, temos escolhido estar ao lado da comunidade LGBTQIA+, dando suporte às ações do movimento, ajudando na realização de eventos, na disseminação dos seus direitos e em diversas trincheiras. Tenho orgulho de ter em minha equipe pessoas que contemplem a diversidade existente na sociedade”, pontuou a secretária dos Direitos Humanos de Alagoas, Maria Silva, reforçando a importância da representatividade no poder público.

Órgãos como MP/AL e OAB/AL atuam em defesa da população LGBTQIA+

De acordo com Marcus Vasconcelos, presidente da Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero, a Ordem dos Advogados do Brasil seccional Alagoas (OAB/AL) atualmente realiza o recebimento de denúncias, entretanto esses casos chegam de forma subnotificada.

De acordo com dados da comissão, só no primeiro semestre deste ano, ao menos 18 casos de violência dessa população chegaram à comissão. Dentro deste número, dois casos de homicídios com suspeitas de homofobia e transfobia foram registrados.

Marcus Vasconcelos, presidente da Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero da OAB/AL (Foto: Acervo pessoal)

“Há uma atuação direta, mas no sentido de acolher as vítimas e o recebimento de casos para que possa a Comissão cobrar as autoridades, além de atuar diretamente no desenvolvimento de ações sociais e políticas públicas – junto à esfera pública – no sentido de combater as violências direcionadas à Comunidade LGBTQIA+. Infelizmente, a comissão não dispõe de dados dos períodos anteriores a janeiro de 2022. Por constituirmos a nova gestão da OAB/AL, não recebemos dados sensíveis relacionados às denúncias e registros que tenham sido eventualmente registrados e enfrentados pela gestão anterior”, explica Marcus Vasconcelos, lembrando que a Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero possui um trabalho de prestar acolhimento e apoio a todas as vítimas de LGBTfobia, cobrando as autoridades. “Ou seja: é o papel garantidor de defesa e garantias de direitos”.

“Não possui a comissão, entretanto, o papel de representar juridicamente as vítimas – em suas individualidades – uma vez que isso cabe à advocacia e defensoria pública em exercer essa representação. A comissão possui legitimidade, por exemplo, em compartilhar informações, anotações, recomendações, estimular a consciência e a aplicação de direitos, replicar informações; mas não de representar as vítimas na Justiça. Por isso que se faz de extrema importância o diálogo com diferentes setores das esferas públicas e privadas para que possa a Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero dialogar com pontos sensíveis, a fim de apoiar e estimular ações e campanhas – no sentido de desenvolver políticas públicas – para que se combata a violência contra a Comunidade LGBTQIA+”, esclarece Vasconcelos.

Promotor Lucas Sachsida, do Ministério Público de Alagoas (Foto: Edilson Omena)
Promotor Lucas Sachsida, do Ministério Público de Alagoas (Foto: Edilson Omena)

De acordo com o promotor de Justiça Lucas Sachsida muitos casos ficam na cifra oculta. “Às vezes a pessoa deixa isso parado por entender que talvez já foi à delegacia e não foi bem atendido ou foi em outro lugar e a pessoa disse que não era crime ou que aquela delegacia está lotada, ou não se sente acolhido para fazer denúncia naquela delegacia. Hoje temos uma delegacia específica, pessoas que estão ali e sabem que isso é crime, que vão atender a pessoa com tal olhar, analisar o assunto com tal enfoque, para que a gente possa verificar o crime e levar Justiça ao caso. Para a pessoa vir à Justiça, ela tem que entender que aquilo vai ser bom para ela também. Isso aconteceu com casos de abuso a crianças e adolescentes. Quando começaram a ver que a Justiça estava funcionando, estava todo mundo falando sobre isso, que podiam vir até nós, elas passaram a vir mais à Justiça e tivemos mais casos como esse”, explica o promotor.

Olhar especializado

A Delegacia Especial dos Crimes contra Vulneráveis Yalorixá Tia Marcelina, especializada em grupos de vulneráveis e vítimas de intolerância e preconceito, foi inaugurada no dia 24 de agosto de 2022 e começou a funcionar oficialmente no dia 25. O nome da delegacia homenageia Tia Marcelina, que foi a mãe de santo espancada após ter seu terreiro invadido e destruído em fevereiro de 1912, em fato histórico que ficou conhecido como o Quebra do Xangô.

A delegacia funciona no Complexo de Delegacias Especializadas (Code), no bairro da Mangabeiras, e é responsável por investigar crimes cometidos contra os grupos vulneráveis, dentre eles: idosos, adeptos de religiões de matriz africana, pessoas portadoras de deficiência, quilombolas, população em situação de rua, negros, ciganos, índios, lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros e congêneres, em virtude desta condição.

A delegada Rebeca Cordeiro conta que a delegacia acaba de completar dois meses de funcionamento.

“Somos abertos ao público de segunda a sexta-feira das 8 às 18 horas. Recebemos os crimes de preconceito de forma geral, não só o racismo homofóbico, mas também a injúria racial, a injúria dirigida à pessoa por causa da orientação sexual dela e é o que mais chega em relação aos casos envolvendo LGBTQIA+, normalmente são injúrias qualificadas e também racismo homofóbico ligado ao uso de sanitários em locais públicos”, explicou Cordeiro. “Aqui eles podem vir, estamos preparados para atendê-los. Estamos aqui para isso”, finalizou a delegada.

Delegada Rebeca Cordeiro (Foto: Gabriely Castelo)
Delegada Rebeca Cordeiro (Foto: Gabriely Castelo)

Dados oficiais sobre crimes cometidos contra a população LGBTQIA+ ainda são escassos e não é raro que as vítimas de agressões LGBTfóbicas encontrem dificuldades ao tentar denunciar ou buscar ajuda nos serviços de saúde, segurança pública ou na Justiça.

À frente da 14ª Vara Criminal estão os promotores de Justiça Lucas Sachsida e Dalva Vanderlei. O promotor esclarece que as vítimas desses crimes devem procurar o poder público.

“Pode vir ao Ministério Público, o ideal é ir primeiramente à delegacia, pois é o primeiro passo da percepção, ali a gente vai ter uma estrutura penal. As pessoas têm que entender que isso gera efeitos não só no criminal, ela pode procurar um advogado ou a Defensoria para uma ação de indenização, por exemplo. Uma pessoa que teve questão de emprego violado, ou não teve acesso a determinado serviço, são questões cíveis", detalhou Sachsida.

Para o promotor, ter uma delegacia nova específica para isso vai tirar muitos casos da cifra oculta, e por isso, veremos esses casos chegarem mais a público.

"A primeira coisa que tem que acontecer é que a gente precisa ter um sistema de Justiça que receba essas pessoas, que saiba como atuar. Se a gente não tem uma especialização de um promotor, de um delegado, de um juiz, de um policial e por aí vai para determinada área, acabam sendo esses fatores os principais desfalques no acesso à Justiça, então os órgãos de Justiça passam a ser o principal problema no acesso à Justiça. A gente precisa de especialização. Isso começou a acontecer aqui em Alagoas, foi uma luta muito grande, uma luta de muitos, do Judiciário, comunidade, organização civil, OAB, enfim", destacou o promotor Lucas Sachsida.