Petrucia Camelo
CHUVA DE INVERNO
Chuva de inverno, quando cai, deixa abrir um véu cinza, que desce das nuvens e derrama-se sobre o solo, soprada pelo vento; logo se esvoaça. Não é como o amor que não passa, mas pode-se até comparar a chuva que cai com o fazer do amor, pois penetra nas profundezas da terra e, nessa parceria, encontra as sementes eclodindo, e logo faz com que nasçam os brotos, e lá sabe Deus o que se sucede mais no caminho das águas, no mistério desse silêncio interno da terra, onde as águas das chuvas formam os lençóis freáticos dos rios subterrâneos.
De pés molhados e frios, há milhares que caminham sob a chuva, saltando as pequenas poças d’água, enfrentando as enchentes dos leitos dos rios que se formam no decorrer da vida, e sob a tênue luz noturna, refletida nas gotas das bolhas que estão prestes a cair das folhas encharcadas.
Porém, para os desvalidos há sempre um abrigo aonde se pode ir: à marquise, à ponte, até que a roupa seque, um cobertor seja jogado; onde um prato de sopa quente seja chegado, fazendo a diferença, embora, às vezes, a chuva fria ofereça apenas um caixão de madeira, onde se é envelopado.
Entretanto, é a chuva capaz de revigorar a esperança e o ânimo do agricultor sertanejo, sustentando o lado econômico, melhorando o lado social. Todavia, é a promessa de boa safra que dá sentido maior às chuvas.
As chuvas, sem meias palavras, trazem à superfície as primeiras folhas das futuras árvores. Não há outro caminho, outro destino para elas; ficarão ali onde a semente foi fincada e, mais tarde, outras chuvas as molharão com tamanha intensidade que, por meio de sua força propulsora, correrão pelos troncos parecendo fitas de seda de dupla face, até penetrarem na terra que lhes cobrem as raízes, ora formadas por suas folhagens, que lhes dão sombra e fazem a grandeza de suas copas.
As torrentes de chuvas a caírem sobre os telhados vermelhos, falhos, escuros, desbotados, é dado o mesmo tratamento, como se as chuvas fossem justas, como se houvesse nelas uma fisionomia fidalga; entretanto, não há sorrisos de cumplicidade, nem de piedade nem de injúrias a inocentes telhas, quebradiças à primeira chuva caída ou a primeira pedra jogada.
O que difere é a chuva a escorrer no telhado, é o seu cair ora exagerado atingindo alvos diversos, promovendo uma, duas ou mais goteiras que farão arredar os móveis da sala, do quarto, da cozinha, pois trazem à superfície a alienação, o sofrimento, a provação da necessidade de não poder morar melhormente, somente restando a vontade de proteger os existentes cacarecos.
O tijolo, que, um dia, orgulhou-se de tornar-se uma parede, vê a chuva torrencial como invasora de privacidade, detentora do poder de desbote e da destruição, a separar os grãos de quartzos do piso, a corroer o reboco, a escavar a construção do alicerce, a abrir valas, sem pensar nos desastres maiores provocados pelos riscos ocasionais dos males das enchentes, que, por desgraça, assumem caráter itinerante, provocam desejos de usurpação do erário.
A chuva, de caráter doce, dos efeitos benéficos a molhar os jardins, sem que a vida sofra os efeitos dos males das catástrofes, sem que os rastros dos infortúnios vivam como fantasma a rodear os sobreviventes, a tolher o desenvolvimento das tomadas de decisões satisfatórias dos órgãos governamentais, é lembrada pela memória da meninice residindo no interior, a tomar banho em água fresca da chuva a correr em bicas do telhado, a deslizar na lama, a observar a retirada do bezerro atolado no lodaçal do açude, a ver o mato rasteiro, encharcado de chuva, a fechar os caminhos indianos.
Milho assado, cozido, pamonha, canjica e demais guloseimas próprias dos festejos juninos, além do cheiro do café torrando na tarde chuvosa, do charque assado na brasa no fogão de lenha, do pão de milho (cuscuz) que de tão grande parecia gemer em meio da mesa, bem junto a uma pequena garrafa verde com flores do campo, a ver a luz acender na candeia, as portas e janelas de duas bandas se fecharem no cair da noite de chuva de inverno, faz o homem do campo fazer de conta que sabe bem mais do que sabe, além das chuvas.

Petrucia Camelo
Sobre
Petrucia Camelo é Assistente Social, nasceu em Viçosa-AL. Casada com o médico e escritor Arnaldo Camelo. Possui 14 livros publicados, dois livros premiados. Pertence a Academia Alagoana de Letras. Sócia Honorária do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas. Sócia da UBE-PE. Fundadora e Presidente do Clube Café, Vinho e Arte - CCVA.