Enio Lins
A despedida, em paz, do guerrilheiro das flores e da simplicidade

PEPE MUJICA SE FOI. Deixa um legado contemporâneo praticamente sem precedentes em termos de referências ideológicas e políticas mundiais. Alcançou, em vida, uma posição de quase-unanimidade. Um marco, sem dúvida, para a democracia no geral e para as esquerdas no particular.
VIVEU 90 ANOS, entre maio de 1935 e maio de 2025. Faltaram apenas sete dias para José Alberto Mujica Cordano festejar seu 90º aniversário, no dia 20. Se saudável estivesse, certamente comemoraria sem pompa nem circunstância, sentado nalguma velha cadeira no seu sítio em Rincón del Cerro, zona rural de Montevidéu. Cultivava flores e hortaliças numa área de cerca de 15 hectares onde residia e da qual se recusou a mudar quando foi eleito presidente do Uruguai, em 2010.
SEU ESTILO DE VIDA, simples, despojado, seu desapego às riquezas materiais, assim como sua fala firme e segura, sem rodeios nem grandiloquências verbais, foram fatores que o projetaram como liderança global. Não se deve esquecer, entretanto, das ideias defendidas por ele – estas são seu maior tesouro e que não podem ser dissociadas de seu legado existencial. Pepe Mujica foi um revolucionário socialista, um militante da esquerda em tempo integral, um guerrilheiro que não hesitou pegar em armas quando isto se fez necessário. E sua esposa Lucía Topolansky – cujo amor e companheirismo são parte indissociável dessa história de vida – é igualmente notável.
LUCÍA TOPOLANSKY SAAVEDRA é uma mulher que não se pode deixar de falar quando se fala sobre o Uruguai. Dona de luz própria, foi vice-presidente da República (mandato do presidente Tabaré Vasquez, entre 2017 e 2020) e senadora por mais de um mandato, pelo Partido Frente Ampla, entre 2005 e 2022. Militante ativa do movimento revolucionário Tupamaros, conheceu Mujica na clandestinidade, foram presos juntos, e formaram uma dupla revolucionária para o resto da vida. Como bem publicou a nada esquerdista Exame: “A relação entre Topolansky e Mujica sempre foi marcada por uma profunda cumplicidade política e pessoal. Ambos se tornaram referências da esquerda uruguaia e desempenharam papéis complementares ao longo ao longo de suas trajetórias. A parceria deles não se restringiu ao campo pessoal, mas foi essencial para a construção do legado político que os acompanharia”. E a luta continua: Viva Lucía!
JOSÉ MUJICA, bem antes de ser presidente do Uruguai, teve uma trajetória de enorme coragem e passou por inúmeros perigos. Como militante revolucionário no enfrentamento à ditadura uruguaia, levou seis tiros, foi preso quatro vezes, fugiu da cadeia em duas ocasiões. Passou 15 anos de sua vida nos cárceres, e destes períodos de detenção, 11 anos foram sob rigoroso isolamento e sob as mais inóspitas condições carcerárias. Com o fim da ditadura militar, em 1985, saiu da prisão sem ódio, ressentimentos ou sentimentos vingativos. Seguiu na militância, defendendo as mesmas ideias socialistas e ideais humanistas. Elegeu-se deputado em 1989, ocupou o cargo de ministro de Pecuária, Agricultura e Pesca entre 2005 e 2008, foi eleito presidente da República do Uruguai em 2010, e com o término de seu mandato presidencial em 2015 elegeu-se senador em seguida, abandonado a carreira eletiva em 2019.
RECOLHEU-SE À SUA VIDA MODESTA para cuidar das hortaliças e das flores, sem deixar de opinar sobre política e ideologia. Cerca de cinco anos depois da aposentadoria, em abril de 2024 lhe foi diagnosticado um câncer no estômago. Em janeiro de 2025, numa entrevista, informou que “após 32 sessões de radioterapia, o câncer havia alcançado o fígado” e por esta razão, “estava morrendo”, e que tinha encerrado o tratamento. Anunciou que não iria mais conceder entrevistas, queria ficar em paz, e fez sua declaração final: “E o guerreiro tem direito ao seu descanso”.

Enio Lins
Sobre
Enio Lins é jornalista profissional, chargista e ilustrador, arquiteto, membro efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas. Foi presidente do DCE da UFAL, diretor do Sindicato dos Jornalistas, vereador por Maceió, secretário de Cultura de Maceió, secretário de Cultura de Alagoas, secretário de Comunicação de Alagoas, presidente do ITEAL (Rádio e TV Educativas) e coordenador editorial da OAM.