Enio Lins
Francisco, o destemido, um papa sem papas na língua

PAPA FRANCISCO, o humanista, deixou a vida e entrou na história. Eterniza-se como personagem gigantesco. Todo Sumo Pontífice da Igreja Católica Apostólica Romana é um político influente para além dos limites da religião. Apesar de vários destaques positivos no papado, a maioria, dentre os 266 papas reconhecidos, não deixou legado elogiável, como Sisto IV (canonizou Francisco de Assis, mas assinou a bula que oficializou a famigerada Santa Inquisição, em 1478). E não foram poucos os papas despossuídos de quaisquer qualidades recomendadas pelo cristianismo, como o devasso e nepotista Alexandre VI (papa entre 1492 e 1503). Ao se testemunhar um ocupante do Trono de São Pedro defender os oprimidos, contestar os poderosos, combater os preconceitos etc., é para se aplaudir, independentemente de fé ou filiação religiosa.
NO DIA DA MORTE DE FRANCISCO, o escritor (sem religião) Leandro Karnal postou no Instagram a mais suscinta tradução do papel desse papa: “O primeiro de nome Francisco. O primeiro jesuíta. O primeiro do Novo Mundo. Falou da dignidade humana de forma decisiva. Mudou a Igreja. Era um papa católico, claro, mas foi também um papa cristão. Isso nem sempre é comum. Fará falta”. Não digo eu que ele “mudou a igreja”, pois a máquina católica é maior que seus papas, sempre possuiu grupos antagônicos em seu seio, o que a possibilita de estar ao lado dos opressores e dos oprimidos simultaneamente. Não vai mudar. Mas Karnal está certo ao identificar que Francisco praticou o cristianismo segundo os preceitos tidos como originais, atitude não corriqueira aos próceres católicos. Fará muita falta, sim. Uma criatura perfeita? Ninguém o é.
DE FORMA INÉDITA e indelével, frases de Francisco entraram para história, como nunca na história das falas dos sumos pontífices: “A Igreja deve pedir perdão aos gays, mulheres e pobres”; “Como gostaria de uma Igreja pobre para os pobres!”; “Nas comunidades cristãs se partilhava a propriedade: isto não é comunismo, isto é cristianismo puro!”; “Gays são filhos de Deus e têm direito de constituir uma família”; “É uma questão de transformar a economia que mata em uma economia de vida”; “O dinheiro deve servir, não governar”; "Não pode subtrair-se à centralidade dos pobres no Evangelho. E isto não é comunismo, é puro Evangelho!”; “De muitas partes, tem-se uma impressão geral de cansaço e de envelhecimento, de uma Europa envelhecida que já não é fértil nem vivaz”; “Quanta violência vemos, muitas vezes até mesmo dentro das famílias, dirigida contra mulheres e crianças! Quanto desprezo é, por vezes, despertado para com os vulneráveis, os marginalizados e os migrantes” ... E, cá entre nós, aprecio mui especialmente essa aqui: “Melhor ser ateu que católico hipócrita”.
UM DIA ANTES DE MORRER, no Domingo de Páscoa, extremamente debilitado, Francisco fez questão de falar algumas palavras à multidão na Praça São Pedro. Na sua mensagem, completa, lida por um auxiliar, ele reafirmou suas marcas: “Neste dia, gostaria que todos nós renovássemos a esperança e renovássemos a nossa confiança nos outros, incluindo aqueles que são diferentes de nós, ou que vêm de terras distantes, trazendo costumes, modos de vida e ideias desconhecidos!”; “O perdão triunfou sobre a vingança. O mal não desapareceu da história; permanecerá até o fim, mas não tem mais predomínio”; “O crescente clima de antissemitismo em todo o mundo é preocupante. Mas, ao mesmo tempo, penso no povo de Gaza, e na sua comunidade cristã em particular, onde o terrível conflito continua a causar morte e destruição e a criar uma situação humanitária dramática e deplorável. Apelo às partes em conflito: declarem um cessar-fogo, libertem os reféns e venham em auxílio de um povo faminto que aspira a um futuro de paz”. Valeu, Chico!

Enio Lins
Sobre
Enio Lins é jornalista profissional, chargista e ilustrador, arquiteto, membro efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas. Foi presidente do DCE da UFAL, diretor do Sindicato dos Jornalistas, vereador por Maceió, secretário de Cultura de Maceió, secretário de Cultura de Alagoas, secretário de Comunicação de Alagoas, presidente do ITEAL (Rádio e TV Educativas) e coordenador editorial da OAM.