Enio Lins

Francisco, o destemido, um papa sem papas na língua

Enio Lins 23 de abril de 2025

PAPA FRANCISCO, o humanista, deixou a vida e entrou na história. Eterniza-se como personagem gigantesco. Todo Sumo Pontífice da Igreja Católica Apostólica Romana é um político influente para além dos limites da religião. Apesar de vários destaques positivos no papado, a maioria, dentre os 266 papas reconhecidos, não deixou legado elogiável, como Sisto IV (canonizou Francisco de Assis, mas assinou a bula que oficializou a famigerada Santa Inquisição, em 1478). E não foram poucos os papas despossuídos de quaisquer qualidades recomendadas pelo cristianismo, como o devasso e nepotista Alexandre VI (papa entre 1492 e 1503). Ao se testemunhar um ocupante do Trono de São Pedro defender os oprimidos, contestar os poderosos, combater os preconceitos etc., é para se aplaudir, independentemente de fé ou filiação religiosa.

NO DIA DA MORTE DE FRANCISCO, o escritor (sem religião) Leandro Karnal postou no Instagram a mais suscinta tradução do papel desse papa: “O primeiro de nome Francisco. O primeiro jesuíta. O primeiro do Novo Mundo. Falou da dignidade humana de forma decisiva. Mudou a Igreja. Era um papa católico, claro, mas foi também um papa cristão. Isso nem sempre é comum. Fará falta”. Não digo eu que ele “mudou a igreja”, pois a máquina católica é maior que seus papas, sempre possuiu grupos antagônicos em seu seio, o que a possibilita de estar ao lado dos opressores e dos oprimidos simultaneamente. Não vai mudar. Mas Karnal está certo ao identificar que Francisco praticou o cristianismo segundo os preceitos tidos como originais, atitude não corriqueira aos próceres católicos. Fará muita falta, sim. Uma criatura perfeita? Ninguém o é.

DE FORMA INÉDITA e indelével, frases de Francisco entraram para história, como nunca na história das falas dos sumos pontífices: “A Igreja deve pedir perdão aos gays, mulheres e pobres”; “Como gostaria de uma Igreja pobre para os pobres!”; “Nas comunidades cristãs se partilhava a propriedade: isto não é comunismo, isto é cristianismo puro!”; “Gays são filhos de Deus e têm direito de constituir uma família”; “É uma questão de transformar a economia que mata em uma economia de vida”; “O dinheiro deve servir, não governar”; "Não pode subtrair-se à centralidade dos pobres no Evangelho. E isto não é comunismo, é puro Evangelho!”; “De muitas partes, tem-se uma impressão geral de cansaço e de envelhecimento, de uma Europa envelhecida que já não é fértil nem vivaz”; “Quanta violência vemos, muitas vezes até mesmo dentro das famílias, dirigida contra mulheres e crianças! Quanto desprezo é, por vezes, despertado para com os vulneráveis, os marginalizados e os migrantes” ... E, cá entre nós, aprecio mui especialmente essa aqui: “Melhor ser ateu que católico hipócrita”.

UM DIA ANTES DE MORRER, no Domingo de Páscoa, extremamente debilitado, Francisco fez questão de falar algumas palavras à multidão na Praça São Pedro. Na sua mensagem, completa, lida por um auxiliar, ele reafirmou suas marcas: “Neste dia, gostaria que todos nós renovássemos a esperança e renovássemos a nossa confiança nos outros, incluindo aqueles que são diferentes de nós, ou que vêm de terras distantes, trazendo costumes, modos de vida e ideias desconhecidos!”; “O perdão triunfou sobre a vingança. O mal não desapareceu da história; permanecerá até o fim, mas não tem mais predomínio”; “O crescente clima de antissemitismo em todo o mundo é preocupante. Mas, ao mesmo tempo, penso no povo de Gaza, e na sua comunidade cristã em particular, onde o terrível conflito continua a causar morte e destruição e a criar uma situação humanitária dramática e deplorável. Apelo às partes em conflito: declarem um cessar-fogo, libertem os reféns e venham em auxílio de um povo faminto que aspira a um futuro de paz”. Valeu, Chico!