Enio Lins
Procissão do Fogaréu: o grande ato cênico da Semana Santa em Alagoas

DESDE TEMPOS imemoriais, a Semana Santa tem ensejado iniciativas religiosas em sintonia com o turismo doméstico. O maior exemplo é o espetáculo da Paixão de Cristo de Nova Jerusalém, que, ao longo de 74 anos em cartaz, desde 1951, atraiu mais de quatro milhões de visitantes para o município pernambucano de Brejo da Madre de Deus.
NAS ALAGOAS, um visionário chamado João José (1941/1997) dedicou sua vida para viabilizar outra Nova Jerusalém nas terras do município de Craíbas. Enquanto tocava solitariamente sua campanha ano após ano, encenava a sacrifício de Cristo onde lhe cediam espaço. Infelizmente, morreu sem ver seu sonho realizado. Em 2015, por conta do esforço do então deputado Givaldo Carimbão, em Craíbas foi erguida a Cidade de Maria, com área cenográfica para a encenação da Natividade – principal meta de Carimbão –, mas também abrigando as cenas dos dias finais de Jesus. Antes, nos anos 80/90, o Morro da Massaranduba, em Arapiraca, foi o centro do teatro religioso ao ar livre, com direito a reportagens da Rede Globo. E a trupe do Jaime Filho ainda hoje percorre cidades interioranas a cada Semana Santa apresentando o espetáculo seminal do Cristianismo. Pois é: o teatro alagoano tem história na Paixão.
NOS DIAS EM CURSO, o mais expressivo momento deste ciclo é a Procissão do Fogaréu, tradição alagoense muito antiga descrita nas cônicas de Pedro Paulino (1829/1902). Interrompida por cerca de 100 anos, retornou às ruas desde 2021, e em grande estilo. A versão 2025 será nesta quinta, a partir das 23 horas, saindo do Largo da Igreja Conventual de Santa Maria Madalena (Museu de Arte Sacra), Centro Histórico de Marechal Deodoro. O auto é realizado sob as luzes dos archotes, pois toda iluminação pública é desligada para que o cenário se assemelhe à Jerusalém no ano 33.
É UMA HERANÇA do medievalismo ibérico, com formação semelhante aos autos de fé, conforme se pode atestar pelas gravuras do tempo da nada Santa Inquisição. Sem os ódios do Santo Ofício, chega ao Brasil em data incerta (uns falam em 1745, outros no século XVI) inspirada nos préstitos lusitanos. Em Portugal chamam-se “Procissão dos Fogaréus” e/ou “Ecce Homo” (“Eis o Homem” – expressão que Judas teria dito ao apontar Jesus aos soldados) e/ou “do Senhor da Misericórdia”. Encena-se a busca pelo Nazareno, no final da noite de quinta-feira, pelas ruas de Jerusalém, num cortejo formado pelas tropas romanas, guiadas por moradores judeus que portam archotes para iluminar os caminhos na então capital da Judeia, reino de Herodes.
É UMA AULA de sociologia política. A representação dos soldados romanos reproduz o poder de polícia de Roma sobre os povos “bárbaros” das regiões ocupadas. O termo farricoco, por sua vez, em minha interpretação, expõe uma incômoda semelhança com a palavra “fariseu” – o que pode ser entendido como resquício do antijudaísmo. Os fariseus eram judeus devotos que seguiam rigidamente a Torá e se opunham a Jesus, também judeu, e o denunciaram às autoridades romanas, por considerá-lo blasfemo em suas intepretações e inovações às leis sagradas israelitas. O vocábulo tem sentido pejorativo, significando hipocrisia política (“farisaísmo”), e “matadores de Jesus” – preconceito usado pelos cristãos para perseguir os hebreus durante muitos séculos. Na procissão, os farricocos representam a pessoa pecadora, e a tradição reza que, com uma tocha na mão, caminhe com os pés descalços durante todo cortejo como forma de expiação. Em resumo, um espetáculo impactante, denso e belo. Coordenada pelo Padre Luciano, a procissão terá a trilha sonora executada pela Orquestra Santa Maria Madalena, formada por músicos locais. Debaixo do breu da noite deodorense, e sob a lua cheia caminhando para quarto minguante, as matracas soarão logo depois das 23 horas, iniciando – no ato – o auto. Imperdível!

Enio Lins
Sobre
Enio Lins é jornalista profissional, chargista e ilustrador, arquiteto, membro efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas. Foi presidente do DCE da UFAL, diretor do Sindicato dos Jornalistas, vereador por Maceió, secretário de Cultura de Maceió, secretário de Cultura de Alagoas, secretário de Comunicação de Alagoas, presidente do ITEAL (Rádio e TV Educativas) e coordenador editorial da OAM.