Petrucia Camelo

CARNAVAL SUBURBANO

Petrucia Camelo 06 de março de 2025

Observa-se, na tradição imemorial do carnaval, que essa festa, apesar de ser defendida por todos os segmentos sociais, mesmo definida em classes em sua caracterização, nunca esteve preocupada com o nível de excelência e, em sua evolução, é de indivíduos que se propõem fazer-se acompanhar da liberdade no sentido mais amplo. Está aí uma das explicações de sua resistência ao tempo.

Ainda, hoje, o carnaval, mesmo com o passar dos séculos, no fluir de cada ano, sem perder a identidade, persiste no processo de reinvenção, sendo aceito por todas as classes sociais. O período carnavalesco, festa democrática, continua fantasiando-se com a máscara da ordem do dia, e de acordo com as conveniências do tempo e do desenvolvimento de cada cultura.

Mas, como se fosse uma mostra tem-se na memória do passado a comemoração carnavalesca, nos bairros periféricos, nas décadas de 40 e 50, quando ainda não havia mesa de bar. Os bares propriamente ditos não haviam de todo sido criados, disseminados; era quando a serventia ao freguês da periferia se fazia no balcão da bodega.

O folião, em pé, no balcão da bodega, procurava matar o desejo de beber até cair, sorvendo em goles cachaça, jurubeba, garrafadas, cerveja até preta, além de “groiselle” e cajuína para mulheres e meninos que também se empanturravam de tira gostos: sarapatel, torresmo (torreiro, na linguagem popular), fígado alemão, sardinha, salame etc., sem faltar um valioso acompanhamento: a farinha de mandioca.

Os frequentadores da bodega de piso sujo e languento de cusparadas, principalmente jogadas ao pé do balcão, recorriam às bebidas para incentivar a animação, e sobre o balcão os copos, que eram enchidos de acordo com a pedida do freguês, pareciam também dançar como marionetes nas mãos do bodegueiro e dos fregueses, ficando ora mergulhados n’água numa pequena bacia de alumínio ou ágata, ora dispostos sobre o balcão a servirem os fregueses, manuseados num pra lá e pra cá, tornando-se opacos pela má higienização.

E para ativar a alegria do folião, pois no carnaval é mesmo a hora de tirar a máscara do cotidiano, para dar passagem à alegria de braços dados com a liberdade interior, encontrava-se no próprio espaço da bodega um pequeno rádio encaixado na prateleira em meio aos gêneros alimentícios, anunciando os boletins noticiosos e apresentando as marchas e frevos de sucesso, e a comemoração carnavalesca simplesmente se completava ali mesmo no balcão. É a festa momesca “válvula de escape” para a classe do povão, frase que lembra Júlio de Lemos (1880): O povo que sofre, é bom que ria.

Os foliões procuravam a bodega do bairro exultantes de alegria e iniciavam a comemoração logo cedo, deixando-se queimar na excitação carnavalesca que os levava a acompanhar o bloco de rua que, ao passar pela bodega, encarregava-se de arrastar até os mais bêbados ainda do dia anterior, levando-os sob o ritmo do frevo, pelas ruas sem asfalto, de chão arenoso, com pequenas depressões escuras ainda úmidas de poças d’água ressecadas do inverno passado, até o bloco chegar ao centro do comércio, onde o carnaval de rua já estava esparramado no frevo.

Os foliões mais remediados se apresentavam fantasiados de camisas coloridas, aspiravam lenços molhados de lança-perfume, e as crianças fantasiadas de índios, pois era mais fácil adquirir plumagens das aves que enchiam os terreiros e as mesas aos domingos, e as mulheres fantasiadas de variações da cor, em maioria com as mãos cheias de maisena, de confetes e serpentinas.

No centro da cidade, decorado com caricaturas do Rei Momo, Pierrô e Colombina, euforicamente estavam os foliões, embriagados de álcool e inebriados de lança-perfume; os foliões dos subúrbios, arrastados pelo álcool e pelos blocos, aí se misturavam com outras classes, a olhar o desfile do corso dos mais abastados.

E no centro do comercio era o encontro de todos os foliões a fazerem o passo no meio das batalhas de talco e de encaracolados de serpentinas ocorridas em plena folia, em volta do palanque armado bem no centro do comercio pela Prefeitura Municipal, onde ficavam as bandas musicais a tocarem o frevo. E o calçamento de paralelepípedo parecia pintado pelo salpicado de chuvas de confetes que eram jogados uns nos outros, retirados de bolsinhas de filó.

Todos se rendiam ao fascínio carnavalesco, completando a atmosfera de festa momesca até raiar o dia, sem se importar com as fantasias que circulavam sempre as mais simples, pois as fantasias luxuosas, exuberantes, que concorriam a prêmios, apresentavam-se nos bailes dos salões dos clubes.

Os foliões da periferia mais exaltados, já dominados não somente pelo álcool, mas também ébrios de ilusões pelo sentimento de desvario que os acometia, faziam com que encarnassem várias personagens. Tendo a sensação de serem ricos, acabavam perdendo a compostura e iam curtir a carraspana presos na delegacia do bairro, sendo logo soltos a pedido dos compadres, dos políticos ou, como castigo aos mais exaltados, permaneciam o resto dos dias de Momo atrás das grandes; e depois, na comunidade, era “aquele falatório”.

E era assim, que o folião era feliz ao modo de carnaval do passado na periferia, que, para ele, era particular, individualizado, até sofrido, mas alegre e despreocupado, somente despertando de volta à realidade ao canto da marcha: ó quarta-feira ingrata, chegas tão depressa só pra contrariar... E, após curar a bebedeira, o folião recolhia-se de volta ao cotidiano, sempre com a saudade do carnaval que passou.