Enio Lins
Quando a hipocrisia e o cinismo formam uma dupla criminosa
No popular, cinismo e hipocrisia são semelhantes, quase sinônimos. Hipócrita é pessoa dissimulada, mas autoprotegida numa capa de “seriedade”; a cínica é descarada, não está nem aí para as aparências. O poder sempre se esmerou no cinismo e na hipocrisia, como pode ser conferido com a leitura de obras muito antigas, como “O Príncipe”, livro póstumo de Nicolau Maquiavel (1469/1527), publicado em 1532. Cinco séculos depois, o poder estadunidense se esmera em hipocrisia e cinismo para além do maquiavelismo. A querela sobre o TikTok é emblemática dessa desfaçatez extremada.
PODER TIKTOKER
Invenção chinesa, a rede social TikTok viralizou nos Estados Unidos, onde sua carteira conta hoje com 170 milhões de fregueses, ou metade da população americana. Entre os ianques, é “a plataforma preferida para assistir a vídeos curtos, e os usuários dos EUA passaram a maior parte do tempo lá em 2023” (diz a internet). Outras pesquisas virtuais dizem que o TicTok, em território estadunidense, está entre os cinco mais acessados endereços, disputando o topo da lista com Facebook, YouTube, Instagram e Pinterest. Ou seja, os amarelos, com as presepadas dos Tiktokers, dentro das quatro linhas das leis do livre-mercado, abocanharam o pedaço do leão na selva do Tio Sam. Segundo reportagem do Financial Times, reproduzida na Folha, em 15 de março de 2024, “a receita do aplicativo no país [EUA] alcançou US$ 16 bilhões em 2023”, complementando: “A ByteDance [controladora do TikTok] como um todo está a caminho de ultrapassar a Meta, dona do Facebook, como a maior empresa de mídia social do mundo em receita”. Puxa vida, nada como investir num país de livre-mercado, que aposta na plena liberdade de expressão e de negócios, nação onde o Estado não mete o bedelho no universo sagrado da iniciativa privada etc. Só que não. O Estado americano acudiu os concorrentes nativos, mandou às favas a livre-concorrência, e detonou o TikTok.
GOLPE EMPRESARIAL
Quando a chinesa emparelhou com as gigantes americanas, em 2020, começou a acabar – para ela – o conceito de liberdade de mercado. Esporeado pelas big techs ianques e suas associadas, o Congresso dos Estados Unidos aprovou, em 2024, uma lei específica determinando que a ByteDance vendesse o aplicativo para alguma empresa americana até 19 de janeiro de 2025, ou enfrentaria censura e fechamento. Dois dias antes desse prazo, a Suprema Corte dos Estados Unidos respaldou a arbitrariedade e considerou “constitucional” a lei antiTikTok, concordando com a patética justificativa de que, pelo fato da empresa ser de acionistas chineses, isto seria “um risco” para a “segurança nacional”, condenando “as práticas de coleta de dados do TikTok e sua relação com o adversário estrangeiro [sic]”.
HIPOCRISIA E CINISMO
Nessa marmota, o Congresso e a Suprema Corte foram hipócritas: as práticas de coleta de dados dos usuários são idênticas às de quaisquer redes sociais nos Estados Unidos e no resto do mundo. O TikTok saiu do ar no dia aprazado, 19 de janeiro. No dia 20, Donald tomou posse – e cancelou a decisão da Suprema Corte e do Congresso, devolvendo à rede ao cenário, concedendo um prazo adicional de 75 dias para que algum grupo americano compre 50% da empresa asiática. Os empresários chineses, que seriam roubados em 100%, agradeceram a Trump pela chance de serem assaltados em apenas 50%, entregando, por preço de banana, metade de sua indústria de memes. Donald, o plutocrata, e que contou com a TickTok na sua recente campanha, não dissimulou, foi cínico: jogou a lei no lixo, e reafirmou que o que vale mesmo é a grana em jogo.
Enio Lins
Sobre
Enio Lins é jornalista profissional, chargista e ilustrador, arquiteto, membro efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas. Foi presidente do DCE da UFAL, diretor do Sindicato dos Jornalistas, vereador por Maceió, secretário de Cultura de Maceió, secretário de Cultura de Alagoas, secretário de Comunicação de Alagoas, presidente do ITEAL (Rádio e TV Educativas) e coordenador editorial da OAM.