Enio Lins

Quando a hipocrisia e o cinismo formam uma dupla criminosa

Enio Lins 23 de janeiro de 2025

No popular, cinismo e hipocrisia são semelhantes, quase sinônimos. Hipócrita é pessoa dissimulada, mas autoprotegida numa capa de “seriedade”; a cínica é descarada, não está nem aí para as aparências. O poder sempre se esmerou no cinismo e na hipocrisia, como pode ser conferido com a leitura de obras muito antigas, como “O Príncipe”, livro póstumo de Nicolau Maquiavel (1469/1527), publicado em 1532. Cinco séculos depois, o poder estadunidense se esmera em hipocrisia e cinismo para além do maquiavelismo. A querela sobre o TikTok é emblemática dessa desfaçatez extremada.

PODER TIKTOKER
Invenção chinesa, a rede social TikTok viralizou nos Estados Unidos, onde sua carteira conta hoje com 170 milhões de fregueses, ou metade da população americana. Entre os ianques, é “a plataforma preferida para assistir a vídeos curtos, e os usuários dos EUA passaram a maior parte do tempo lá em 2023” (diz a internet). Outras pesquisas virtuais dizem que o TicTok, em território estadunidense, está entre os cinco mais acessados endereços, disputando o topo da lista com Facebook, YouTube, Instagram e Pinterest. Ou seja, os amarelos, com as presepadas dos Tiktokers, dentro das quatro linhas das leis do livre-mercado, abocanharam o pedaço do leão na selva do Tio Sam. Segundo reportagem do Financial Times, reproduzida na Folha, em 15 de março de 2024, “a receita do aplicativo no país [EUA] alcançou US$ 16 bilhões em 2023”, complementando: “A ByteDance [controladora do TikTok] como um todo está a caminho de ultrapassar a Meta, dona do Facebook, como a maior empresa de mídia social do mundo em receita”. Puxa vida, nada como investir num país de livre-mercado, que aposta na plena liberdade de expressão e de negócios, nação onde o Estado não mete o bedelho no universo sagrado da iniciativa privada etc. Só que não. O Estado americano acudiu os concorrentes nativos, mandou às favas a livre-concorrência, e detonou o TikTok.

GOLPE EMPRESARIAL
Quando a chinesa emparelhou com as gigantes americanas, em 2020, começou a acabar – para ela – o conceito de liberdade de mercado. Esporeado pelas big techs ianques e suas associadas, o Congresso dos Estados Unidos aprovou, em 2024, uma lei específica determinando que a ByteDance vendesse o aplicativo para alguma empresa americana até 19 de janeiro de 2025, ou enfrentaria censura e fechamento. Dois dias antes desse prazo, a Suprema Corte dos Estados Unidos respaldou a arbitrariedade e considerou “constitucional” a lei antiTikTok, concordando com a patética justificativa de que, pelo fato da empresa ser de acionistas chineses, isto seria “um risco” para a “segurança nacional”, condenando “as práticas de coleta de dados do TikTok e sua relação com o adversário estrangeiro [sic]”.

HIPOCRISIA E CINISMO
Nessa marmota, o Congresso e a Suprema Corte foram hipócritas: as práticas de coleta de dados dos usuários são idênticas às de quaisquer redes sociais nos Estados Unidos e no resto do mundo. O TikTok saiu do ar no dia aprazado, 19 de janeiro. No dia 20, Donald tomou posse – e cancelou a decisão da Suprema Corte e do Congresso, devolvendo à rede ao cenário, concedendo um prazo adicional de 75 dias para que algum grupo americano compre 50% da empresa asiática. Os empresários chineses, que seriam roubados em 100%, agradeceram a Trump pela chance de serem assaltados em apenas 50%, entregando, por preço de banana, metade de sua indústria de memes. Donald, o plutocrata, e que contou com a TickTok na sua recente campanha, não dissimulou, foi cínico: jogou a lei no lixo, e reafirmou que o que vale mesmo é a grana em jogo.