Enio Lins

Assad assado e, da Síria para o mundo, mais fogo no horizonte

Enio Lins 10 de dezembro de 2024

No domingo, 8, foi do Estadão a menos ruim manchete na chamada “grande mídia” brasileira sobre a vitória dos radicais islâmicos na guerra interna que sangra o território sírio desde 2011: “Novo regime na Síria traz incertezas sobre futuro sem Assad e não está livre do autoritarismo”. Os demais veículos midiáticos de porte avantajado repetiram usuais manchetes “lacradoras” contra o líder recém-derrubado, Bashar Assad, sugerindo a falsa descrição de um governo ditatorial sendo substituído por algo “melhor”.

CRIAS DA AL QAEDA

Verdade é que herdeiros da Al-Qaeda venceram a luta contra um grupo islâmico menos radical que dominava a Síria há, pelo menos, meio século. Chama-se Hayat Tahrir al-Sham (HTS) a organização vitoriosa, seu comandante atende pelo nome de Mohammed al-Golani e, até ontem, eram considerados – esse grupo e seus líderes – terroristas pelos Estados Unidos. Mas, como reportado n’O Globo, Joe Biden, ainda titular da Casa Branca, se regozijou: “Até que enfim, o regime de Assad acabou [!]” e garantiu que “os EUA trabalharão com parceiros e interessados para ajudá-los a aproveitar esta oportunidade”. Voltando às manchetes pasteurizadas, todas se esquivaram de dizer, logo nas primeiras linhas, que o “novo” na Síria é o velho espírito fundamentalista inspirado por Osama bin Laden. Convém lembrar ter sido o finado Osama um líder rebelde criado e financiado pelos Estados Unidos, e que, depois, se virou contra seus criadores.

AL QAEDA DE BLAZER

Citando fontes internacionais, o G1 apresenta Mohammed al-Golani (com 42 anos) como nativo da Arábia Saudita (tal qual bin Laden), cujo nome real é Ahmed Hussein al-Shar'a. Segundo a Wikipédia, ele começou sua carreira de terror no Iraque, em 2003, como membro da al-Qaeda. Em 2006, passou para o Estado Islâmico, ano em que foi detido pelos americanos e ficou preso até 2011. Liberado, foi enviado para a Síria com a missão de criar por lá uma sucursal da al-Qaeda/Estado Islâmico, a Frente al-Nusra, para combater o governo de Bashar Assad (opositor dos Estados Unidos e de Israel). Em relato publicado n’O Globo, al-Golani passou a “reformular a marca”, sendo evidente a maquiagem de sua imagem desde a primeira entrevista (para a Al-Jazeera), quando, em 2014, trajado de farda de combate e turbante, declarou ser seu objetivo “ver a Síria governada sob a lei islâmica, deixando claro que não havia espaço para as minorias alauíta, xiita, drusa e cristã do país” – é bom lembrar que, para os extremistas muçulmanos, o maior pecado do regime de Assad era garantir a diversidade religiosa na Síria. Segue o G1: “em 2021, al-Golani deu sua primeira entrevista a um jornalista americano. Vestindo um blazer e com o cabelo curto penteado para trás, o agora mais moderado chefe do HTS afirmou que seu grupo não representava nenhuma ameaça ao Ocidente e que as sanções impostas contra ele eram injustas”. Você apostaria nisso?

MUDANÇAS NO CENÁRIO

No teatro de guerra no Oriente Médio, a Rússia e o Irã perdem uma posição importante. Moscou (que recebeu o deposto Assad) e Teerã deixaram seu velho aliado na mão a partir de outubro deste ano, ao retirarem seus apoios por conta da necessidade de deslocamento desses esforços para suas próprias frentes de combate (Rússia x Ucrânia/Otan, Irã x Israel/EUA). E agora? O menos cínico que pode ser dito sobre a sofrida Síria é “[existem] incertezas sobre futuro sem Assad e [que] não está livre do autoritarismo”. Mas o mais correto é apontar para a iminência do aumento do terror naqueles territórios, e que, cedo ou tarde, isso será exportado para outros pontos do mundo.