Enio Lins
Uma tragédia que não pode ser repetida jamais
Subi a serra pela primeira vez por volta de 1977, trabalhando. Estava na lide como estagiário da equipe comandada pelos arquitetos e urbanistas Mário Aloísio e Rodrigo Ramalho, professores do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFAL. O escritório de Mário (Traço Arquitetos Associados) havia vencido a licitação para a feitura do Plano Diretor de União dos Palmares, o primeiro município alagoano a implementar esse indispensável estatuto, cujo prefeito era Manoel Gomes de Barros. Há 47 anos, o perímetro onde existiu a capital do Quilombo dos Palmares não era tombado nacionalmente, mas a perspectiva de seu reconhecimento como território de grande valor histórico estava no centro das atenções. Definir os marcos e os cuidados para com essa área, no planejamento urbano municipal, portanto, era prioridade. Na época, o acesso ao topo do outeiro era precário, por estreita trilha de barro batido entre árvores, aqui e ali beirando despenhadeiros, e os cuidados com a segurança do trajeto foram objetos dos estudos com redobrada atenção.
PRIMEIROS PERIGOS
Em 1979, logo depois da formulação do Plano Diretor de União dos Palmares, cujas recomendações ainda eram teoria, começaram as “subidas na serra” como expressão de militância antirracista e antiautoritária. O Brasil penava sob a famigerada ditadura militar. As primeiras incursões coletivas à Serra da Barriga, com motivações ideológicas, foram feitas no peito e na raça, sem estrutura viária adequada, com longos trechos percorridos a pé. Eram atos de coragem. As preocupações dividiam-se entre incidentais (com a polícia) e acidentais (próprios para quaisquer atividades montanhosas). Os incidentes ficaram restritos ao ano inicial, quando ocorreram prisões de vários ativistas do então chamado Movimento Negro (“negões maconheiros e comunistas” para os conservadores); mas, naqueles tempos de múltiplos perigos, não foram registrados acidentes dignos de nota.
RECONHECIMENTO OFICIAL
Com a redemocratização, em 1985, a valorização política da Serra da Barriga deu um enorme salto. Em 1986, a área foi oficializada como Patrimônio Histórico Nacional e se multiplicaram as excursões ao solo da antiga Cerca Real do Macaco, cidadela final de Zumbi dos Palmares. Ao longo de todas essas décadas, a preocupação com os acessos ao alto do morro foi uma constante, seja pelos movimentos não-governamentais, seja pelos entes governamentais. Por se tratar de região de grande interesse arqueológico e histórico, quaisquer obras foram e são objeto de muitas restrições (por exemplo, o perímetro está cravejado de igaçabas, antigas unas funerárias indígenas, anteriores ao quilombo, tornando contraindicado o uso de equipamentos usuais de terraplanagem). Em 14 de novembro de 2019, na gestão Renan Filho, com verbas estaduais, o trajeto foi concluído com 7,4 quilômetros de pavimentação, depois de cumpridas as recomendações dos órgãos do patrimônio histórico e arqueológico brasileiro.
CUIDADOS REDOBRADO
Considerando 1979 como o marco da primeira incursão coletiva à Serra da Barriga, são 45 anos de grande movimentação naquele trajeto sem nenhum acidente grave conhecido até este 24 de novembro. Que a tragédia ocorrida há dois dias seja a primeira e única. Que as prontas respostas determinadas pelo governador Paulo Dantas, desde os primeiros momentos do desastre, sejam aprofundadas para a identificação das causas do acidente, e que novas medidas protetivas sejam tomadas a partir deste fato, para garantir que jamais se repita. Às vítimas e às suas famílias, todo apoio e solidariedade.
Enio Lins
Sobre
Enio Lins é jornalista profissional, chargista e ilustrador, arquiteto, membro efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas. Foi presidente do DCE da UFAL, diretor do Sindicato dos Jornalistas, vereador por Maceió, secretário de Cultura de Maceió, secretário de Cultura de Alagoas, secretário de Comunicação de Alagoas, presidente do ITEAL (Rádio e TV Educativas) e coordenador editorial da OAM.