Enio Lins
A Coleção Perseverança, do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, é Patrimônio Nacional
Em memorável sessão, dia 12, em Brasília, o Conselho Consultivo do IPHAN aprovou o tombamento da Coleção Perseverança, de propriedade do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, como Patrimônio Nacional, em meio a uma vigorosa campanha proativa dos movimentos afrodescendentes e de lideranças das religiões de matriz africana.
PRESERVAR COMO META
Em seu parecer, a antropóloga Luciana Gonçalves, com talento cirúrgico, sem parcialismos, resume questões e demandas afrodescendentes e destaca o papel do IHGAL na preservação do acervo. Valorizou o trabalho do pesquisador Fernando Gomes, incorporando relatos de seu livro sobre as violências de 1912 e o papel do Legba. Aponta para a necessidade da gestão compartilhada entre a entidade proprietária da coleção e os segmentos que se sentem nela representados. Aplaudo! Mas saliento a complexidade e diversidade dos significados contidos naquelas 211 peças – preciosidades que vão muito além do conteúdo religioso. Mas, o mais importante é a meta principal alcançada: o reconhecimento oficial como patrimônio nacional. Viva!
POLÍTICA, RELIGIÃO, OPRESSÃO
Classificar o terror de 1912 como única e exclusivamente motivado por intolerância religiosa é um erro primário. Ulula, há 112 anos, o ódio político como a força motriz central (não única) da onda de violência contra terreiros identificados como redutos de Euclydes Malta, o Legba, então pela terceira vez como governador de Alagoas e em marcha para a quarta eleição naquele fatídico ano. Com muita justiça, Tia Marcelina é lembrada como referência das vítimas entre o povo de terreiro. Mas é muito injusto esquecer-se do Tio Salu, identificado pela imprensa inimiga dos Malta como “célebre feiticeiro, que ‘opera’ como chefe na Bahia, Alagoas e Pernambuco”, personagem sobre o qual nem se sabe se foi real ou é pura ficção. O célebre K.Lixto, um dos maiores cartunistas brasileiros do começo do século XX, desenhou, numa das mais importantes revistas de circulação nacional, Fon-Fon, uma charge onde “denuncia” que os terreiros escolhiam quem governava Alagoas. Naquele cenário radicalizado, os preconceitos religiosos, raciais e sociais foram usados contra os cultos afrobrasileiros como impulsionadores para a barbaridade política-eleitoral. Isso há 112 anos, mas não só...
TÚNEL DO TEMPO
Estender o manto do sagrado sobre esses fatos terrenos, políticos e eleitorais, apagando ou reduzindo sua influência, é produzir um falso histórico contra o papel da religiosidade afrobrasileira junto às elites devotamente cristãs. Euclydes Malta, branco e oligarca, era de terreiro, era de Xangô. Mas só ele? E aconteceu apenas até 1912? Os temores e desejos – políticos, empresariais, sentimentais – das classes dominantes buscam acolhimento entre as crenças das classes oprimidas desde que o Brasil responde por esse nome. E na contemporaneidade essa cumplicidade não é diferente, aqui e acolá. Esqueceram-se de Antônio Carlos Magalhães, obá de xangô no Gantois? E, exatos 80 anos depois do Quebra de Xangô, veículos da grande mídia brasileira (especialmente Veja e Jornal do Brasil) denunciaram “a convocação” de Pais e Mães de Santo de Alagoas “para a realização de rituais de magia negra” em Brasília. Essa pauta, atacando a “macumba política alagoana em 1992”, foi relembrada em 2022, no Fantástico, marcando os 30 anos do episódio, e dando voz a um Malleus Maleficarum em versão evangélica. A Coleção Perseverança é isso: política, religião, violência. É, para quem tem fé na cultura, um precioso documento étnico, ético, sociológico, antropológico, artístico. Valeu, IPHAN! Ubuntu.
Enio Lins
Sobre
Enio Lins é jornalista profissional, chargista e ilustrador, arquiteto, membro efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas. Foi presidente do DCE da UFAL, diretor do Sindicato dos Jornalistas, vereador por Maceió, secretário de Cultura de Maceió, secretário de Cultura de Alagoas, secretário de Comunicação de Alagoas, presidente do ITEAL (Rádio e TV Educativas) e coordenador editorial da OAM.