Enio Lins

A Coleção Perseverança, do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, é Patrimônio Nacional

Enio Lins 14 de novembro de 2024

Em memorável sessão, dia 12, em Brasília, o Conselho Consultivo do IPHAN aprovou o tombamento da Coleção Perseverança, de propriedade do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, como Patrimônio Nacional, em meio a uma vigorosa campanha proativa dos movimentos afrodescendentes e de lideranças das religiões de matriz africana.

PRESERVAR COMO META

Em seu parecer, a antropóloga Luciana Gonçalves, com talento cirúrgico, sem parcialismos, resume questões e demandas afrodescendentes e destaca o papel do IHGAL na preservação do acervo. Valorizou o trabalho do pesquisador Fernando Gomes, incorporando relatos de seu livro sobre as violências de 1912 e o papel do Legba. Aponta para a necessidade da gestão compartilhada entre a entidade proprietária da coleção e os segmentos que se sentem nela representados. Aplaudo! Mas saliento a complexidade e diversidade dos significados contidos naquelas 211 peças – preciosidades que vão muito além do conteúdo religioso. Mas, o mais importante é a meta principal alcançada: o reconhecimento oficial como patrimônio nacional. Viva!

POLÍTICA, RELIGIÃO, OPRESSÃO

Classificar o terror de 1912 como única e exclusivamente motivado por intolerância religiosa é um erro primário. Ulula, há 112 anos, o ódio político como a força motriz central (não única) da onda de violência contra terreiros identificados como redutos de Euclydes Malta, o Legba, então pela terceira vez como governador de Alagoas e em marcha para a quarta eleição naquele fatídico ano. Com muita justiça, Tia Marcelina é lembrada como referência das vítimas entre o povo de terreiro. Mas é muito injusto esquecer-se do Tio Salu, identificado pela imprensa inimiga dos Malta como “célebre feiticeiro, que ‘opera’ como chefe na Bahia, Alagoas e Pernambuco”, personagem sobre o qual nem se sabe se foi real ou é pura ficção. O célebre K.Lixto, um dos maiores cartunistas brasileiros do começo do século XX, desenhou, numa das mais importantes revistas de circulação nacional, Fon-Fon, uma charge onde “denuncia” que os terreiros escolhiam quem governava Alagoas. Naquele cenário radicalizado, os preconceitos religiosos, raciais e sociais foram usados contra os cultos afrobrasileiros como impulsionadores para a barbaridade política-eleitoral. Isso há 112 anos, mas não só...

TÚNEL DO TEMPO

Estender o manto do sagrado sobre esses fatos terrenos, políticos e eleitorais, apagando ou reduzindo sua influência, é produzir um falso histórico contra o papel da religiosidade afrobrasileira junto às elites devotamente cristãs. Euclydes Malta, branco e oligarca, era de terreiro, era de Xangô. Mas só ele? E aconteceu apenas até 1912? Os temores e desejos – políticos, empresariais, sentimentais – das classes dominantes buscam acolhimento entre as crenças das classes oprimidas desde que o Brasil responde por esse nome. E na contemporaneidade essa cumplicidade não é diferente, aqui e acolá. Esqueceram-se de Antônio Carlos Magalhães, obá de xangô no Gantois? E, exatos 80 anos depois do Quebra de Xangô, veículos da grande mídia brasileira (especialmente Veja e Jornal do Brasil) denunciaram “a convocação” de Pais e Mães de Santo de Alagoas “para a realização de rituais de magia negra” em Brasília. Essa pauta, atacando a “macumba política alagoana em 1992”, foi relembrada em 2022, no Fantástico, marcando os 30 anos do episódio, e dando voz a um Malleus Maleficarum em versão evangélica. A Coleção Perseverança é isso: política, religião, violência. É, para quem tem fé na cultura, um precioso documento étnico, ético, sociológico, antropológico, artístico. Valeu, IPHAN! Ubuntu.