Enio Lins

Golpismo sistêmico brasileiro

Enio Lins 27 de agosto de 2022

O Supremo Tribunal Federal, através do Ministro Alexandre de Moraes, tomou uma decisão vital e histórica para assegurar a continuidade democrática no Brasil, ao determinar busca e apreensão sobre articuladores/divulgadores de um golpe de Estado. Houve quem se abalasse com isso e até exigisse explicações para tamanha “afronta a tantos homens de bem”. Bom, explicação ou desenho?

A história do Brasil é uma história de golpes, a começar pela Independência, quando a corte portuguesa na colônia pulou na frente do povo para se separar mantendo-se aboletada nos dois tronos ao mesmo tempo. Pedro I, já imperador do Brasil, golpeou a Assembleia Geral Constituinte, em 1823, concentrando todo poder em si mesmo, e depois partiu para Portugal onde se apossou da coroa lusitana. E, em solo brasileiro, a mesma família real deu outro golpe, em 1840: coroou Pedro II aos 15 anos, quando a Constituição estipulava 18 anos para tal.

A Proclamação da República é tida como golpe e daí vem a sequência: Deodoro, na presidência, tentou um golpe em novembro de 1891, não deu certo e renunciou em seguida, sob tentativa de golpe da Marinha (Primeira Revolta da Armada). Floriano, o vice, golpeou para assumir, pois a Carta Magna estabelecia novas eleições, consolidou o regime republicano com mão de ferro, inclusive derrotando a Segunda Revolta da Armada, mas recusou o golpe que seus admiradores estavam organizando, em 1894, para mantê-lo no posto. Peixoto garantiu a posse de seu sucessor, Prudente de Moraes, e se retirou da vida pública.

Na República Velha, entre 1889 e 1930, o Brasil viveu em Estado de Sítio, na prática, por quatro anos, de 1922 a 1926, num golpe dado pelo presidente Arthur Bernardes. E ainda explodiram: a Revolta Tenentista de 1914, a Rebelião dos 18 do Forte de Copacabana (1922), e a Coluna Prestes/Miguel Costa (1925/1927) – todos visando romper a ordem constitucional vigente. Não incluo aqui a Revolta da Vacina (1904) e a Revolta da Chibata (1910), duas tragédias brasileiras com motivações específicas.

A Revolução de 30, sob a liderança de Getúlio Vargas, com apoio militar, rompe a ordem constituída. Em 1935 foi a vez dos comunistas tentarem também, sem sucesso. Em 1937 Getúlio decreta o ditatorial Estado Novo, liquidando as esperanças de reestruturação democrática. Em 1938 os Integralistas (fascistas brasileiros) arriscam seu golpe e cercaram o palácio presidencial do Catete, mas são derrotados. Após a vitória aliada na II Guerra Mundial, em 1945, Getúlio Vargas é derrubado por mais um golpe de estado.

O voto democrático elege Dutra em 1945 e devolve Vargas ao poder em 1950. Um ano antes de terminar o mandato, Vargas, na noite em que soube que seria deposto por mais um golpe militar, suicida-se em 24 de agosto de 1954. A reação popular fez com que os golpistas recuassem. Juscelino Kubitschek é eleito presidente em 1955. Antes de tomar posse é vítima de uma tentativa de golpe, derrotada por um contragolpe militar comandado pelo General Lott, que, em 11 de novembro de 1955, depôs o presidente interino, Carlos Luz, e manteve o país em Estado de Sítio até a posse de JK, em 31 de janeiro de 1956.

Juscelino Kubitschek, o risonho “presidente bossa-nova”, enfrentou em seu mandato mais duas tentativas de golpe militar: Jacareacanga, em 1956, e Aragarças, em 1959, mas em ambas, tropas legalistas cercaram os golpistas e os renderam. JK conseguiu concluir seu mandato em 1960.

Jânio Quadros, eleito em 1960, tentou um autogolpe em 25 da agosto de 1961, renunciando para ser reconduzido com poderes ditatoriais. Não funcionou. E os militares ameaçaram com mais um golpe se a constituição fosse cumprida e o vice assumisse. Jango assumiu depois de muita tensão, com um acordo parlamentarista que vigorou até 1963, e foi derrubado pelo golpe militar em 1º de abril de 1964.

A Ditadura Militar ocupou o Brasil de abril de 1964 a janeiro de 1985, com dois golpes dentro do golpe: a edição do AI-5 em 13 de dezembro de 1968, e o impedimento da posse do vice Pedro Aleixo (por ser civil) quando do derrame do general-presidente Costa e Silva, em 1º de setembro de 1969. Oito anos depois, o general-presidente Geisel derrotou uma tentativa de golpe no nascedouro, demitindo o seu ministro do Exército, o general golpista Sylvio Frota, em 12 de outubro de 1977.

De janeiro de 1985 até hoje, enfim, são 37 anos de Estado Democrático de Direito, o período mais longo sem golpes de Estado no Brasil (desconsiderando os dois impeachments), e isso é um patrimônio a ser respeitado. O golpismo sistêmico brasileiro, aqui resumido desde 1822, é motivo mais do que suficiente para aplaudir entusiasticamente a decisão do STF. Golpe, no Brasil, não pode ser tratado como brincadeira de empresários tchutchucas.

Cena típica na Ditadura Militar (1964/1985) colhida pelo repórter fotográfico Evandro Teixeira, em 1964, e disponível no site iPhoto Channel