Dr. Wanderley Neto

OS HOMENS E AS MÁQUINAS

Dr. Wanderley Neto 06 de março de 2022

Num domingo, reservado ao merecido descanso, é bom e saudável esticar as pernas, pesquisar sites de notícias, absorver informações (saber é poder), mas sobretudo o que a gente quer mesmo é arejar a mente. Convém a quem por ofício, necessidade ou teimosia em aprender a arte da escrita (o meu caso), escolher temas leves e singelos que possam trazer algum entendimento, distrair, confortar e levar bons fluidos a quem ler, necessidade básica para um iminente começo de semana e trabalho duro na tão temida segunda-feira.
Difícil é fazer florescer um tema tão simples e envolvente diante da pauta diária da mídia numa terra arrasada por recentes acontecimentos bélicos, políticos e policialescos. Principalmente, por que sou um leitor compulsivo de jornal e busco me abstrair fugindo da pauta das crises, afinal nem tudo é desgraça e degradação moral. E tudo passa.
Lembro-me que em 2005 fui convidado a dar uma aula de Anatomia a um grupo de jovens estudantes de medicina. Conversando com eles fui informado de que, em breve, não usariam mais cadáveres em suas lições de anatomia, pois a modernidade tinha chegado ao ensino médico. O fato me levou a uma reflexão sobre o uso crescente e inevitável da tecnologia no diagnóstico médico das doenças. As imagens produzidas pelas máquinas são de um impressionante realismo. A anatomia e o funcionamento dos órgãos podem hoje ser expostos em minúcias, microscopicamente e em alta resolução, coisa que no século passado anos só podia ser feita por meio de necropsia. Os mais saudosistas atacaram a tese de que a máquina estaria substituindo o homem e, com isto, retirava o glamour e o charme da arte milenar da medicina.
No caso da formação médica, o que me ocorreu foi que em anos não teremos mais uma das solenidades mais tocantes ao termino do curso: a homenagem ao cadáver desconhecido. Só quem passou por um momento comovente como este pode sentir a importância para o futuro exercício da nossa profissão. Nas aulas de anatomia, no contacto com os cadáveres, o cheiro do formol, o teatro repleto de ossos, peças anatômicas é que começamos a despertar para o respeito e compromisso com o homem, mesmo morto, inerte e desconhecido. Não sei o impacto que isto trouxe no exercício da medicina pelo lado humanístico. Na questão do aprendizado técnico, nenhuma dúvida: os manequins e computadores, com animações e simulações, trazem muito mais informações e conhecimento técnico.
Já no exercício da medicina vislumbrei um movimento contrário e saudável de resgate da figura do médico. É que a medicina é ciência e arte. A ciência pode ser um tarefa em que as máquinas podem superar o homem, mas a arte é coisa exclusiva dos humanos e, sem dúvida, intransferível.
A máquina pode descobrir a doença e até tratá-la. Mas tratar o paciente, que é mais importante que a doença, só outro homem pode fazer. Cada vez mais as escolhas de quem pode fazer, não será pelo medico com mais conhecimento científico, mas por aquele que conhece mais sobre o homem. Quem sabe se este conceito de solidariedade, amor ao próximo, dedicação e afeto não se transfere para outras atividades humanas, tornando nosso mundo mais fraterno e solidário? Amém.