O assunto da semana que rivalizou com a chegada da vacina foi o “tratamento precoce”, uma recomendação auto-terapêutica tão medieval que foi mencionada por Giovanni Boccaccio, o escritor italiano e autor de ``Decameron'', obra escrita entre 1348-1353 e que narra a peste na Itália, em 1348. Descrevi parte do texto de Boccaccio neste espaço, em 4 de abril deste ano em DOIS RELATOS LITERÁRIOS QUE NOS SERVEM DE ALERTA EM TEMPOS DE PANDEMIA
Contudo, não é preciso ir tão longe para mostrar como é insana a sugestão dos chamados negacionistas. Tratamento precoce significa, no ponto de vista de quem o recomenda, que o paciente deve se automedicar antes de ir ao médico, como se ele já soubesse o diagnóstico do que está sentindo. A prática foi muito aplicada na época colonial, no Brasil Império e início da República, quando havia poucos médicos no país.
Por acaso, encontrei alguns desses raros exemplos em jornais maceioenses do período imperial, ocasião em que Alagoas havia poucos anos se tornado província.
O período pesquisado foi entre 1866 a 1920, fase em que dois tipos de doenças assolaram o estado em todos os seus pontos extremos: as epidemias do cólera e da gripe espanhola. Para suprir a falta imunização de doenças como diabetes, coqueluche, difteria e todas as endemias respiratórias, a solução era a oferta de remédios milagreiros, tanto caseiros como estrangeiros vendidos nas s farmácias e recomendados pelos proprietários, considerados os mais entendidos em medicina na época já que o número desses profissionais, por exemplo em 1866, era maior que o de médico. Segundo o historiador do início do século 20, Manuel Diegues Júnior, nessa época só havia em Maceió sete médicos, entre eles, Francisco Dias Cabral, mais tarde prefeito da cidade e Tomáz Espíndola, também escritor, historiador, advogado e jornalista.
Os medicamentos vindos do exterior chegavam por meio dos navios que atracavam no porto de Maceió, principalmente os franceses, cuja tripulação trazia cargas de misturas químicas garrafais com promessa de cura de todas as enfermidades possíveis e que eram despachadas, diretamente para os estabelecimentos farmacêuticos da então pequena cidade.
O livro Uma Associação Centenária, de Moacir Medeiros de Sant’Ana, de 1966, refere-se a Maceió de 1866 como uma localidade com 2196 casas, 1696 de telhas e 500 de palhas. Não havia serviço de limpeza e cada morador era responsável por limpar a porta de sua casa, sendo sujeito à multa caso não fizesse. Os dejetos humanos eram carregados em barricas por escravos e enterrados nos fundos dos quintais ou lançados no mar. Ocorrendo incêndio, moradores da vizinhança eram obrigados a apagar ou enviar escravos para essa missão. Se um patrão não indicasse seus servos seria multado em quatro mil réis. Esse quadro de miséria era um convite às moléstias de qualquer espécie e uma forma de levar consumidores desesperados às farmácias, já que os hospitais não se destinavam a pobres e negros da época.
Foi nessa condição insalubre da cidade que se estabeleceu o que hoje se chama de tratamento precoce em Maceió e os anúncios nos principais jornais da cidade eram a melhor forma que o farmacêutico, José Francisco da Silva Braga, formado pela Escola de Medicina da Bahia encontrou para estabelecer a “empurroterapia” para evitar mais doenças. Ele montou uma botica (loja de produtos químicos e medicamentos) na rua do Comércio, número 214. Além de Braga, Cláudino Falcão Dias já havia montado a Pharmacia Imperial. No final do século 19, havia drogarias em abundância no corredor da Rua do Comércio, como a Pharmacia Central. a Brazil. Calmon e Cia O Extrato de Leite Virginal indicado para enfermidades como boubas, cravos e doenças venéreas era considerado o principal “tiro e queda” da época.
Eram em jornais como, O Progressista, Gazeta de Notícias, o Alagoas, O Papagaio, Diário do Povo, Jornal de Alagoas e Diários de Alagoas que a propaganda fazia a festa. Um deles referia-se ao Ferro Ozonado, recomendado como medicamento contra a Erisipela e quem vendia era a Farmácia Fidelidade. O Puritol, prometido contra as impurezas do sangue, era garantia de cura radical e rápida. O Pó Dentifrício Medicinal Jaquelin, servia para dores de dentes. A garrafa de Vinho de Marsa, do doutor francês Moucelot, para reconstituição e regeneração do organismo enfraquecido e no combate ao sangue enfraquecido era a carga farmacêutica estrangeira com desembarques frequentes. Outro remédio francês anunciado foram as pílulas de Quinium e de Ferro Dialysé, do doutor H. Viven, de Paris, orientado para as febres intermitentes, raquitismo, gastralgias
Para as moléstias pulmonares uma infinidade de medicamentos milagreiros era indicada, insistentemente nos anúncios de jornais. Eram feitos no Brasil e os fabricantes brasileiros, para vender seus produtos, aproveitavam para atacar os considerados os "detoxes'' estrangeiros denunciando como prejudiciais à saúde. O xarope indicado pelo doutor Carlos Bettencourt prometia uma ação mágica contra a asma, refluxo, tosse de qualquer natureza, bronquite e catarro crônico. Já o peitoral Louro Silvestre era outro medicamento contra a coqueluche e bronquite. O Rob Antiboubático também tinha ação mágica. Mesmo com todas essas recomendações, centenas de milhares de alagoanos foram acometidos pelo cólera e pela gripe espanhola e morreram durante o período aqui citado. No caso do cólera, a situação foi tão gritante que Alagoas foi destaque no jornal New York Times.
Uma situação que não difere muito do kit-Covid, estimulado pelo Ministério da Saúde que foi tirado de circulação pela justiça na semana passada.
Gerônimo Vicente
Sobre
O trecho padrão original de Lorem Ipsum, usado desde o século XVI, está reproduzido abaixo para os interessados. Seções 1.10.32 e 1.10.33 de "de Finibus Bonorum et Malorum" de Cicero também foram reproduzidas abaixo em sua forma exata original, acompanhada das versões para o inglês da tradução feita por H. Rackham em 1914.