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‘Abre aí, motô!’

Vendedores detalham rotina de dificuldades e incertezas no transporte coletivo numa atividade que, além de proibida, divide opiniões

Por Evellyn Pimentel e Lucas França com Tribuna Independente 30/03/2018 08h51
‘Abre aí, motô!’
Reprodução - Foto: Assessoria

Quem precisa usar o transporte coletivo para se locomover na capital alagoana não consegue ficar indiferente a um público específico que ocupa este ambiente: os vendedores ambulantes. Logo nas primeiras horas da manhã já é possível encontrá-los nos veículos. E o sobe e desce segue por todo o dia, sete dias na semana. O que muita gente não sabe é que por trás do famoso “bom dia pessoal” ou “abre aí, motô” há o risco de acidentes, assaltos e o pior deles: a ilegalidade.

A atividade de comércio dentro dos coletivos não possui regulamentação, pois conforme o artigo 290 do Código de Posturas de Maceió, Lei nº 3.538, de 23 de dezembro de 1985, “É proibido ao vendedor ambulante, de qualquer natureza, sob pena de multa: subir nos veículos em movimentos para oferecer mercadorias”.

Daí surge uma série de problemas porque a atuação irregular gera transtornos como a insegurança jurídica e a falta de amparo legal em qualquer situação desfavorável. De acordo com um levantamento organizado pelos próprios ambulantes, existem cerca de 200 atuando na capital, em diversos trajetos.

A reportagem da Tribuna Independente acompanhou alguns durante a jornada e a queixa é sempre a mesma: a dificuldade de acesso aos ônibus que muitas vezes termina em acidentes. Uma espécie de embate diário é travado, às vistas da sociedade e do poder público.

“O maior problema da gente é com os motoristas que não facilitam o trabalho né? Chega no ônibus a gente pede para entrar e corre, quando chega na porta eles fecham a porta, a gente vai enganchado. Já aconteceu de colega nosso ficar pendurado e o ônibus sair andando. Às vezes a mercadoria fica presa e eles não deixam a gente tirar e acaba perdendo”, conta Nicácio Lopes, de 29 anos.

O vendedor afirma que já trabalha há 13 anos comercializando nos coletivos, com os mais variados produtos. Ele reclama do desafio da atividade que, segundo ele, oferece diversos riscos.

“Já aconteceu de um cara ficar preso na porta do ônibus da Casa Vieira até a Caixa Econômica. Mas só passamos por isso porque a gente precisa. De vez em quando acontece assalto, às vezes os assaltantes respeitam a gente porque tá trabalhando, mas às vezes não. Levam mercadoria, levam dinheiro...” detalha.

PORTAS QUE NÂO ABREM

O ambulante defende a venda nos coletivos como a única fonte de renda em tempos de desemprego e crise econômica. Para ele a atividade precisaria ser formalizada.

“Faz 13 anos que eu trabalho dentro dos coletivos e muitos motoristas não deixam a gente entrar. Eu dependo daqui, tenho mulher, filhos, pago aluguel. Pago INSS, pago prefeitura, todo ano duas taxas, tenho um MEI. A gente já foi na SMTT, porque proibiram a gente de entrar. O que a gente quer é trabalhar, que fosse regularizado, tudo direitinho, mesmo que tivesse que pagar uma taxa, mas que a gente fosse regularizado. A gente queria que olhassem para isso. Se a gente tivesse apoio... mas são treze anos e nunca nenhum órgão nos procurou. Já tentei organizar uma vez, mas não deu certo. Sem apoio aqui nós não somos nada”, diz Nicácio.

[caption id="attachment_81385" align="aligncenter" width="450"] Ambulante Nicácio Lopes: ‘Já aconteceu de colega nosso ficar pendurado e o ônibus sair andando. Às vezes a mercadoria fica presa e eles não deixam a gente tirar e acaba perdendo’ (Foto: Edilson Omena)[/caption]

O desemprego é a porta de entrada para a venda nos coletivos, segundo Mauro Gomes, de 26 anos. Há cerca de um ano ele ficou desempregado. Sem sustento, ele afirma que se viu obrigado a vender nos ônibus.

“Eu trabalhava em loja de sapatos, mas com essa crise fiquei desempregado. Trabalhei em shopping, em outras empresas, mas não deu certo. Eu fiquei sem emprego e tive que vir para cá. Durante a semana eu vendo nos ônibus e nos fins de semana eu trabalho na praia”, explica.

Mauro aponta a relação com os rodoviários como o principal desafio da atividade. “Alguns motoristas param no ponto, aí mandam a gente subir e quando a gente vai tentar eles fecham a porta na nossa cara e saem mangando. Param longe do ponto para que a gente não consiga subir. Mas têm muitos que respeitam, que ajudam, que incentivam a população a comprar”, emenda.

VANTAGENS

Apesar das dificuldades e do crescente aumento da concorrência, o comércio parece ser lucrativo e eles afirmam que não pretendem abandonar a atividade.

“O que a gente tira dá para se virar né? Depende do movimento, tem dia que a gente tira R$ 50,00, tem dia que é melhor e sai R$ 70. Tem mês que a gente consegue um salário, outros meses a gente só tira R$ 300. Antigamente, quando não tinha muito vendedor, eu já cheguei a tirar mil reais em um mês, agora não consigo mais porque a concorrência tá grande”, opina Nicácio Lopes.

[caption id="attachment_81386" align="aligncenter" width="450"] (Foto: Lucas França)[/caption]

Sem trabalhar e estudar, A.R., de 17 anos, foi outro que optou pelo comércio nos coletivos como forma de sustento. Ele afirma atuar desde os 12 anos. “Eu vendo aqui tentando arrumar dinheiro, estou sem estudar há um tempo. Já tentei arrumar como jovem aprendiz, mas não consegui. Para não fazer coisa errada prefiro ficar aqui no busão”, resume.

Menos de um salário mínimo em doze horas de trabalho por dia

Amados por uns e odiados por outros, esses trabalhadores vivem uma rotina de várias horas de trabalho, incertezas quanto à própria renda e principalmente a quem recorrer em casos de acidentes durante a jornada de trabalho.

Com balas, pipocas, biscoitos, chocolates e uma variedade de guloseimas, há dois anos o vendedor Adriano Vitor dos Santos, solteiro de 43 anos, tem uma rotina diária de mais de 12 horas para levar o sustento. Adriano conta que sempre trabalhou de maneira informal por falta de oportunidades, mas que agora faz parte de uma escolha dele.

“Na época não tinha nada, eu comecei a trabalhar para comprar as coisas para mim e ajudar em casa”, disse o vendedor.

Antes de ser vendedor dentro dos ônibus, Adriano já trabalhava como vendedor de bilhetes de jogo (o famoso Alagoas da Sorte) e para complementar a renda começou a vender guloseimas nos ônibus. “Moro em uma casa com quatro pessoas. Eu, minha tia, minha irmã e um primo. Desde quando vim de Rio Largo há muito tempo, quando meus pais morreram, então resolvi trabalhar como vendedor para ajudar nas despesas da casa”, conta.

Adriano disse que a renda é incerta e o perigo da profissão constante.

“Em relação à renda não posso dizer que é ruim ou boa. Varia muito. No mês que as vendas são boas tiro uns R$ 900 ou até mais. Já no mês que tem pouca ‘movimentação’ tiro uns R$ 300. Porém, não dá para reclamar porque é o que me sustenta. Agora, se a gente for comparar com o perigo que corremos no dia a dia, acaba sendo pouco. Confesso que nunca sofri um acidente de trabalho grave, nem nunca caí do ônibus, mas uma vez a cesta com os produtos ficou pendurada para fora. Mas, já soube de companheiros que caíram quando o motorista fechou a porta ou ficaram presos para fora. Têm motoristas que abrem tranquilamente, mas têm outros que fecham quando tentamos entrar. Não são todos”, explica o vendedor.

Adriano Vitor conta também que a relação com os passageiros não é tão estável. Muitas vezes alguns são mal educados. “A relação com os passageiros depende muito da credibilidade que você passa, da conversa, do vender seu peixe. Alguns respondem, outros não. Muitos cochicham falando mal dizendo que estamos atrapalhando. Mas, é comum no dia a dia, é trabalho com outras pessoas, é assim mesmo, a gente finge que não ouviu e segue para não se estressar”, comenta.

Como a profissão não é regulamentada, além de ficar doente e, consequentemente, não poder sair para vender, um dos maiores temores desses trabalhadores é a quem recorrer no caso de acontecer acidentes ou perder a mercadoria, já que a profissão não é regulamentada. Também há o temor de ter a mercadoria apreendida.

“Poderia vender droga, mas prefiro estar aqui”

É pensando no futuro que o jovem Rodolfo Souza, de 20 anos, sai todos os dias de casa para vender canetas nos coletivos. “Penso no meu futuro, terminar minha faculdade de Gastronomia, que é o mesmo ramo do meu pai. Só que até agora eu não tive condição. Já fiz muita besteira na vida, eu podia estar na grota vendendo droga, mas eu prefiro estar aqui. Se eu fizer isso, que futuro eu quero?”, diz.

Rodolfo nasceu em Recife (PE) e afirma que veio para Maceió em busca de melhores condições de vida. Até iniciou o curso superior de Gastronomia, mas após perder o emprego, resolveu trancar a faculdade e há dois anos vende nos coletivos.

“Eu morava lá em Recife e vim para cá tentar uma vida melhor, mas não consegui. Estava trabalhando, mas fiquei desempregado. Não consegui pagar mais a faculdade porque moro de aluguel, aí vem feira e outras despesas. Um dia estava andando no ônibus e vi alguém vendendo e pensei que poderia ser uma opção, já se passaram dois anos e continuo vendendo, mas ainda não consegui voltar para a faculdade”, lamenta.

O jovem afirma que falta apoio para realizar o trabalho que muitas vezes é desvalorizado.

“Eu vendo canetas, quando acaba pego cremosinho... Procuro uma mercadoria que dê mais lucro, que saia bem. A gente vai diversificando. Vendo nego bom, chiclete... Quando a gente sobe nos ônibus muita gente apoia, mas tem aqueles que criticam, que viram o rosto. Muitos tratam a gente como qualquer coisa, mas estamos trabalhando honestamente, humildemente”.

[caption id="attachment_81387" align="aligncenter" width="450"] Para Rodolfo Souza, apesar da rotina difícil e sem tantas recompensas, sonho de voltar a cursar Gastronomia ainda se mantém vivo (Foto: Edilson Omena)[/caption]

Rodolfo também defende a regulamentação. Para ele seria uma saída para a visão negativa que as pessoas têm a respeito da atividade.

“Alguns se dizem vendedores, mas não são, são assaltantes. Semana passada foi pego um com revólver dentro do coletivo. Para mim não é vendedor porque se fosse, não estava roubando. Eu sou vendedor, ofereço minhas mercadorias. Se a gente trabalhasse com colete, com identificação, seria mais fácil, porque saberiam a diferença”, acredita.

Atividade é irregular e trabalhadores não têm respaldo em caso de acidentes

E por não ter regulamentação e não haver fiscalização, encontrar crianças e adolescentes trabalhando como vendedores ambulantes nos ônibus não é tarefa muito difícil.

Em cidades como Salvador, por exemplo, existe regulamentação para essa categoria, que se encontra inserida no Decreto N.º 12.016, de 08 de Junho de 1998. No entanto, por aqui não existe nenhuma regulamentação para que eles possam fazer seu serviço respaldados em alguma segurança trabalhista.

[caption id="attachment_81388" align="aligncenter" width="450"] Gazzaneo esclarece que lei impede regulamentação (Foto: Sandro Lima)[/caption]

Em setembro do ano passado a Câmara Municipal de Maceió se reuniu para discutir possíveis mudanças no Código de Posturas de Maceió, que já tem mais de três décadas. De lá para cá, as discussões cessaram. Até o momento, a Prefeitura de Maceió também não sinalizou nenhuma perspectiva de liberação do comércio para os vendedores ambulantes que sonham em ter as atividades no interior dos coletivos regulamentada.

Em Maceió, quem administra e dá as diretrizes é a Secretaria Municipal de Segurança Comunitária e Convívio Social (SEMSCS) que, quase sempre, apenas dita as regras do jogo.

O diretor de Convívio Social da SEMSCS, coronel Adilson Bispo, confirma a irregularidade. “Qualquer tipo de comércio em Maceió precisa de autorização/licença se considerarmos que ele vende tanto no ponto como dentro do ônibus. Temos o Código de Postura que esclarece sobre o assunto”.

Em relação à fiscalização e sobre de quem seria a responsabilidade caso aconteça algo com algum ambulante dentro dos coletivos, o diretor da SEMSCS disse que, no momento, o que poderia ser dito era que a comercialização é proibida.

SEM CHANCES

O procurador chefe do Ministério Público do Trabalho em Alagoas (MPT-AL), Rafael Gazzaneo, afirma que por haver uma lei municipal proibindo o comércio nos ônibus, não há possibilidade de regulamentação.

“Num primeiro momento essa proibição, por meio do Código de Posturas não parece ser inconstitucional, até porque o comércio dentro dos coletivos não é algo adequado. Sendo assim, não é possível regulamentar por essa proibição. A atividade de ambulante em si não é proibida, existe regulamentação, o que não pode é a atividade específica nos ônibus”, destaca.

RODOVIÁRIOS

O presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Transportes Rodoviários do Estado de Alagoas (Sinttro-AL), Sandro Régis, reconhece as dificuldades, mas afirma que os motoristas cumprem recomendações das empresas.

“Tem motorista que evita abrir, não por ruindade, é temendo uma represália por parte da empresa. Porque a empresa não autoriza. Às vezes o motorista fecha a porta com eles subindo aí os motoristas, às vezes chateados, fecham a porta, mas não é ruindade, é porque as empresas pedem para dificultar a entrada. Muitas vezes a gente vai nas empresas justificar porque eles querem punir os trabalhadores por permitir a entrada, mas a gente diz que é impossível proibir isso. As empresas dizem que se subir vai punir, se subir não pode colocar pra descer, mas se tiver como parar mais na frente, é essa a orientação que é passada” esclarece.

Segundo Sandro Régis, a prática comercial é comum e difícil de ser impedida.

“Hoje em dia isso está praticamente reconhecido pelas empresas, que é impossível inibir mais essa prática de comércio nos ônibus. É uma rotina, o comércio livre dentro dos ônibus. A própria SMTT repassou ofício às empresas pedindo que proibisse apenas esses ambulantes que andam com as caixas de amendoim torrado, que andam com fogo. Se eles têm esse pensamento é porque os outros podem negociar dentro dos ônibus”, avalia o presidente.

A Superintendência Municipal de Transporte e Trânsito (SMTT) foi procurada pela reportagem para comentar o assunto, mas informou que cabe à SEMSCS o controle da atividade.

O Sindicato das Empresas de Transporte Urbano de Passageiros de Maceió (Sinturb) também foi questionado a respeito das medidas tomadas para controle dos vendedores nos coletivos da capital, mas até o fechamento não retornou o contato.

Especialistas afirmam ser preciso procurar alternativas

O advogado Sérgey Costa explica que, na capital alagoana, um dos exemplos de regulamentação é a lei Nº 6.519, de 18 de dezembro de 2015, que dispõe sobre a atividade dos ambulantes na areia das praias.

“No texto da mencionada lei, é dito que entre os objetivos do ordenamento estão a preservação do meio ambiente, a garantia de organização das atividades, poder assegurar o livre acesso dos cidadãos às praias além de proteger a livre iniciativa. As licenças serão concedidas pela SMCCU [atual SEMSCS], obedecendo os critérios estabelecidos. Segundo a regulamentação, todos os equipamentos dos ambulantes devem ser removidos da praia até no máximo 18h; será obrigatório o uso de uniforme padronizado e uso de crachá contendo número de registro na SMCCU, além de possuir tabela de preços dos produtos em local visível e com letras em tamanho legível. Sobre os produtos a serem comercializados, cerveja em vasilhame de lata, refrigerantes, caipirinhas, sucos e refrescos, coco verde, sanduíches naturais, sorvetes e picolés embalados estão entre as mercadorias permitidas para venda, sendo observada a conservação correta dos alimentos’’, esclarece o advogado.

[caption id="attachment_81389" align="aligncenter" width="450"] Sérgey Costa esclarece que ambulantes podem ter direitos assegurados caso façam contribuições previdenciárias (Foto: Cortesia)[/caption]

Ainda segundo a regulamentação, o descumprimento da Lei consistirá em infração, podendo gerar multa. Entre as infrações estão: multa de R$ 500 no caso de comercialização de produtos sem autorização do órgão competente, de R$ 300 se comercializar produtos em desacordo com os termos da licença, e R$ 300 se o ambulante for encontrado sob o efeito de álcool e drogas ilícitas no ambiente de trabalho.

Para Sérgey, é notável que tal regulamentação apenas impõe obrigações/regras para os ambulantes, não lhes atribuindo direitos. “Caso aconteça algo durante a jornada de trabalhos desses ambulantes, eles não terão nenhuma garantia e nem direito, ou seja, vai ficar por isso mesmo, uma vez que exercem uma atividade irregular”, explica.

O advogado esclarece ainda que, por fim, se faz importante mencionar que existe a Emenda Constitucional nº 47, de 05.07.2005, publicada no DOU de 06.07.2005, que deu nova redação ao parágrafo 12, do artigo 201, da Constituição Federal. “Tal emenda assegura que as donas de casa de famílias de baixa renda ou sem renda própria, trabalhadores de baixa renda, como camelôs, ambulantes, vendedores de porta em porta etc., poderão se aposentar recebendo um salário mínimo por mês, recolhendo o percentual de 11% sobre o salário mínimo para o INSS”.

O contador Sidney Costa complementa que para estes ambulantes terem um respaldo trabalhista a melhor solução é contribuírem com o Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS).

“O conselho que daria para essas pessoas que utilizam desse meio informal para conseguir o sustento da sua família, é que contribuam para o INSS como Contribuinte Individual Autônomo, é a única maneira de ter direitos inerentes à aposentadoria, auxílios-doença, acidente, etc. Assim, estariam resguardados”, ressalta Sidney.