Cidades

'Usam tráfico para higienização social', diz representante de moradores de rua

Rafael Machado coordena o Movimento Nacional da População de Rua e trata sobre busca pela solução dos crimes

Por Carlos Amaral com Jornal Tribuna Independente 04/02/2018 15h57
'Usam tráfico para higienização social', diz representante de moradores de rua
Reprodução - Foto: Assessoria

Quarenta ou vinte e oito mortes de pessoas em situação de rua em Alagoas em 2017. Independentemente da fonte dos números, eles chamam a atenção. Ou deveriam, já que tratam de vidas humanas. O fato é que no final do ano passado se iniciou com mais força alguma ação por parte do poder público alagoano para buscar solucionar esses crimes, principalmente após a morte do militante anarquista Nô Pedrosa, na véspera do último Natal. Para Rafael Machado, coordenador do Movimento Nacional da População de Rua em Alagoas, esses assassinatos também são para promover “higienização” social.

Tribuna Independente – Ocorreram algumas dezenas de mortes de população em situação de rua em 2017, se fala em 40 – e a Secretaria de Segurança Pública (SSP) diz que foram 28 –, mas mesmo assim são números grandes e neste começo de ano já houve algumas. Em sua avaliação, o que tem gerado essas mortes?

Rafael Machado – Fomos chamados para esclarecimentos pelo delegado da Delegacia de Homicídios, a pedido da Defensoria Pública. De antemão a gente desconhece algumas falas, por exemplo, quando se fala que essas mortes são por arma branca. Nós sabemos que há vítimas e arma de fogo. Sabemos que alguns desses crimes têm relação com o tráfico de drogas, mas não são todos. Muitos aproveitam esse problema do tráfico para fazer “higienização” social, como foi o caso do Nô Pedrosa. As pessoas dizem que ele não estava em situação de rua, mas não adianta a pessoa ter uma casa e não ter condições de mantê-la. Isso leva as pessoas à vulnerabilidade social do mesmo jeito.

Tribuna Independente – Então, em sua avaliação é “higienização” mesmo?

Rafael Machado – A gente avalia que é um pouco de tudo, a começar pela falta de políticas públicas. Se você fizer uma visita nos equipamentos do Município, verá que eles são fragilizados. Em Alagoas, a gente só tem quatro Centros Pop [Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua] e um albergue para o estado todo, que atende a nossa demanda e de outros estados. Se você fizer um levantamento dentro desse albergue, se tiver nove moradores em situação de rua de Maceió, é muito. Os demais são de outros estados. Hoje está se dando casas aos moradores em situação de rua, mas eles acabam vendendo esse imóvel. Por quê? Porque não se consegue manter essa casa...

Tribuna Independente – O problema é muito maior do que conseguir uma casa...

Rafael Machado – É muito amplo. As empresas não empregam moradores em situação de rua; a Secretaria do Trabalho não investe em economia solidária. A saúde é precária; a assistência social também. A gente precisa que as políticas públicas em Alagoas sejam, de fato, concretizadas. Mas não podemos deixar passar batido que em 2007 e 2008 existia, sim, um grupo de milícia matando população de rua. Isso foi constatado. Não se pode dizer que é só o tráfico a causa dessas mortes. Não é.

Tribuna Independente – E como ficou essa questão da milícia, as autoridades deram alguma solução?

Rafael Machado – Quando o Movimento Nacional [da População de Rua] veio aqui – na época eu vivia nas ruas, passei 14 anos nessa situação e há três que saí – que se constatou a existência de milícia. Mas até onde se sabe, não foi dada solução a isso. O que mais me dói é quando eu vejo um coronel lotado na Assembleia Legislativa Estadual [ALE] – eu tenho foto – começa a bater nos meninos, a agredir a população em situação de rua. É essa polícia que a gente tem, que faz a segurança para gente? Hoje temos mais medo da polícia do que dos bandidos [O nome do coronel não foi revelado].

Tribuna Independente – O senhor chegou a denunciar esse coronel ao Comando da Polícia Militar?

Rafael Machado – Não, mas eu divulguei as fotos...

Tribuna Independente – Houve alguma ameaça por causa disso?

Rafael Machado – Não. Até porque hoje eu trabalho para o Governo do Estado [Secretaria de Direitos Humanos]. Mesmo assim, eles não compram meu caráter nem minha personalidade.

Tribuna Independente – Você viveu 14 anos nas ruas. Como chegou a essa situação?

Rafael Machado – Eu não venho de uma família vulnerável e conheci a droga na escola. Nesse tempo eu dançava balé na Emília Clark, um dos melhores de Alagoas. Passei da maconha para o crack. Foi o ‘tiro’. Comecei a roubar dentro de casa. Levei tudo. Por minha causa, minha mãe foi obrigada a abandonar a casa. Aí fui morar na antiga estação de trem em Jaraguá. Foi ali que comecei a me prostituir. Naquela época eu conheci o Consultório de Rua Fique de Boa, e através dele conheci o Caps [Centros de Atenção Psicossocial] e acessar algumas políticas públicas. Todas que temos hoje são da gestão do Cícero Almeida [sem partido]. O atual prefeito não implantou nada de novo, a não ser a Casa de Passagem Familiar.

Tribuna Independente – O senhor citou no começo da entrevista a morte do Nô Pedrosa, e muito tem se falado que o caso pôs mais luz nessa discussão sobre os assassinatos de pessoas em situação de rua. Concorda com essa avaliação?

Rafael Machado – O Nô fazia parte do Movimento [Nacional da População de Rua]. Me sentava muito com ele na Praça da Assembleia. Ele me dava muitos conselhos. Ele me chamava de ‘menino lutador’. O Nô todos os dias estava no Centro e só ia embora após o café da noite, na Casa de Ranquines. Ele almoçava lá também. Nô não era violento. Sua morte pôs luz sobre as mortes das pessoas em situação de rua porque conseguiu provocar militantes sociais. Lançamos um manifesto na Catedral e conseguimos atrair a atenção do poder público. O Nô era uma das pessoas que faziam formação política para a população em situação de rua. Ele faz muita falta para a gente, tá entendendo? Aí me diga: o caso do Nô foi que? Para mim foi “higienização”. Um dia antes da morte, ele disse para mim que os vizinhos o pressionavam a deixar a casa por causa do mau cheiro. ‘Bora para lá, porque me ameaçaram’. A ele e o Márcio [José Márcio dos Santos, morreu no mesmo instante que Nô Pedrosa]. A última ação que o Nô participou conosco foi a do Natal Solidário.