O legista espúrio e o falso cadáver
O Instituto Médico Legal andava com uma enorme carência (mais do que atualmente) de auxiliares de necropsia. De legistas, nem falar. Tínhamos lá três dedicadíssimos doutores, incluindo o mais notório de todos, o professor Luiz Duda Calado. Duda era mestre na aplicação dos conhecimentos médicos a questões jurídicas. Ademais, tão profundamente conhecedor do corpo humano, que nem precisava abrir um cadáver para definir a “causa mortis”. Duda chegou até prever o prazo definitivo para a sua morte. Antes de seus colegas médicos definirem que era portador de um câncer devastador, ele já sabia disso havia tempo e segurou a barra até quanto pôde. Trabalhamos juntos durante anos, na atividade pericial forense e tudo o que sei de medicina legal, aprendi com ele. Duda foi o maior de todos os legistas e insuperável até hoje.
O que continuo lamentando, é que não me deixaram render-lhe a última homenagem, batizando com seu nome o IML de Arapiraca. Preferiram prestigiar a mediocridade local.
Quando comecei a construir o Instituto Médico Legal de Palmeira dos Indios – iniciativa que, por razões políticas, não me permitiram concluir – sugeri à Câmara de Vereadores da cidade fosse dado à obra o nome de Duda, ideia desde logo acatada. Mas ela permanece irresponsavelmente inacabada, entregue à própria sorte.
Duda Calado tinha no IML de Maceió o seu legista de confiança (era o seu substituto), do mesmo modo que mantinha à sua disposição um necropsista (auxiliar de necropsia) que sabia tudo da profissão. Não preciso dizer o nome deles, porque agora não vem ao caso. Todavia, na equipe subalterna encarregada da manter assépticos cadáveres e salas de necropsia, existia um servidor meio louco (vou lhe dar o nome de Biu), brincalhão “até umas horas” e irresponsável quando lhe apetecia. O que esse cara aprontava no IML nunca esteve no gibi. Sonho dele era ser necropsista. De modo que, quando o pessoal do plantão estava “trabalhando” num cadáver, Biu não tirava os olhos do serviço.
– Doutor Duda, deixe eu cortar um cadáver pro senhor, deixe! Garanto que corto direitinho… – ele apelou, um dia. – O senhor fica só do lado mandando: “corte aqui, corte alí…”
E Duda Calado, sempre tolerante e descontraído:
– Fique na sua, rapaz! Você não está tão bem no seu serviço, lavando o seu cadAverzinho, lavando o seu chãozinho…
– Mas, doutor, eu pretendo crescer no serviço, tá me compreendendo?
– Nesse caso, volte a estudar, e estudar bastante!… Só o estudo faz o homem crescer.
E Biu, de cuja cachola brotava uma bela ideia de jerico por segundo, não se abateu e se manteve na expectativa de um dia realizar o seu sonho.
E esse dia chegou. Aliás, não foi dia.
A noite, tranquilíssima, descambava para a madrugada. Mesas desocupadas, tudo zerado no IML. De modo que legista e auxiliar foram dormir em casa, deixando o Biu tomando conta do plantão, com a recomendação de ligar para eles caso houvesse necessidade.
Passava da meia-noite quando encostou na porta do IML um caminhão conduzindo o corpo de um homem, encontrado na via pública. Desceram o corpo da carroceria do veículo, levaram até uma das salas de necropsia e o depositaram numa das mesas, conforme orientação do Biu, que foi confundido com o legista plantonista, pelo motorista e ajudantes do veículo.
E Biu, fazendo pose de legista, para os trabalhadores do caminhão:
– Algum de vocês é parente do finado?
– Não senhor, doutor. – adiantou-se um dos ajudantes.
– Mas conheciam o cara, não conheciam?
– Não, doutor. A gente encontrou ele caído na rua. O motorista quase passou com o carro por cima dele!…
E o Biu, coçando o queixo e ainda posando de doutor:
– Tudo indica que foi “infarte”! Mas só posso afirmar com certeza quando fizer a necropsia…
O motorista do auto-carga, aparentando não estar se sentido bem naquele ambiente fantasmagórico, aproximou-se do suposto doutor:
– Será que daria para o senhor liberar gente, doutor? Ainda tenho uma carga para pegar no Mercado da Produção…
– Podem ir. – autorizou o Biu.
Exibindo um sorriso maquiavélico, o servente achou que havia chegado a sua hora. Quer dizer, a oportunidade para administrar a primeira prática de necropsista. Em assim sendo, trancou todas as portas do IML, apossando-se, em seguida, do instrumental destinado às autópsias. Colocou tudo sobre a mesa respectiva e entregou-se à tarefa de desnudar o suposto cadáver. Feito isso, aplicou um banho de água gelada no defunto, que acusou o golpe, fazendo uma careta infeliz. Biu notou a reação e falou firme:
– Quê que há, rapaz? Tá fazendo careta por quê? Tá com frio, é?
Como o “de cujos” não respondeu nada, Biu se preparou para meter mãos à obra: com uma caneta, traçou a linha onde deveria fazer a incisão, para a abertura da caixa toráxica do “cadáver”. Nesse momento, o referido liberou um suspiro prolongado, seguido de um arroto filho da mãe:
– Aaaaaarrrroooouuuut… Bluuuurrrp…
O cheiro emanado do arroto era álcool puro. Biu acusou o golpe, quase caiu para trás, mas logo recompôs-se:
– Eita arroto da bubônica da peste! Quantos barrís de chope você bebeu, rapaz? Fique aí quietinho, porque preciso começar a sua autópsia!
Ao escutar a palavra “autópsia” o defunto abriu os olhos, espantado:
– Êpa! Autópsia?! Que autópsia?
– A sua, rapaz!
– Que brincadeira é essa? Morri, não! Tô vivinho, tá vendo não? Tô só um pouco biritado!
– Se faça de vivo não, rapaz! Tu tá morto, sim! Fique quieto, porque preciso abrir a sua barriga!…
Nesse momento, o “morto” pulou da mesa, meteu os peitos na porta e pinoteou na rua, nuzinho como nasceu. Enquanto corria, os pés batiam na bunda – plac, plac, plac – e o pênis, livre e solto, produzia aquele barulhinho – lept, lept, lept, lept…
Atrás dele, o Biu, de bisturi em punho, berrava a plenos pulmões:
– Pare aí, rapaz! Pare aí, porque que eu preciso terminar a sua autópsia!…